Esperou que o chefe do Setor de Comunicações saísse e depois sentou-se diante da máquina. Sabia que era raramente usada, já que quase todos os contatos entre Karellen e Stormgren tinham lugar durante as suas reuniões semanais. Como aquele era um circuito de emergência, esperava uma resposta rápida.
Após um momento de hesitação, começou a bater sua mensagem com dedos pouco práticos. A máquina ronronou suavemente e as palavras brilharam por alguns segundos na tela escurecida. Van Ryberg recostou-se na cadeira e esperou pela resposta.
Mais ou menos um minuto depois, a máquina começou de novo a ronronar. Como tantas vezes acontecera, Van, Ryberg se perguntou se o supervisor nunca dormiria.
A mensagem-resposta foi breve e desanímadora: «NENHUMA INFORMAÇÃO. O ASSUNTO FICA INTEIRAMENTE A SEU CRITÉRIO. K.»
Com bastante amargura e sem qualquer satisfação, Van Ryberg deu-se conta de quanta responsabilidade caíra sobre seus ombros.
Nos últimos três dias, Stormgren tivera oportunidade de fazer uma análise bastante acurada de seus captores. Joe era o único que tinha alguma importância. Os outros eram anônimos — a ralé que todos os movimentos ilegais costumam atrair. Os ideais da Liga da Liberdade nada significavam para eles: sua única preocupação era ganhar a vida com um mínimo de trabalho.
Joe era uma criatura bem mais complexa, embora por vezes parecesse a Stormgren um bebê gigante. Suas intermináveis partidas de pôquer eram pontilhadas de violentas discussões políticas e não demorou que Stormgren se apercebesse de que o enorme polonês jamais pensara seriamente nas causas pelas quais estava lutando. A emoção e o extremo conservadorismo obscureciam-lhe o pensamento. A longa luta que seu país travara pela independência condicionara-o de tal maneira, que ele ainda vivia no passado. Era uma espécie de sobrevivente, uma dessas pessoas que não sabem o que fazer com uma vida organizada. Quando o seu tipo desaparecesse, se é que alguma vez desapareceria, o mundo tornar-se-ia um lugar mais seguro mas muito menos interessante.
Já quase não havia dúvidas, no que dizia respeito a Stormgren, de que Karellen não conseguira localizá-lo. Tinha procurado blefar, mas não convencera seus captores. Estava quase certo de que o mantinham ali para ver se Karellen agiria, e agora, vendo que nada acontecera, podiam prosseguir com seus planos.
Stormgren não ficou espantado quando, quatro dias após sua captura, Joe lhe disse que esperasse visitas. Havia algum tempo que o grupo se mostrava cada vez mais nervoso, e o prisioneiro deduziu que os líderes do movimento, vendo que não havia mais perigo, viriam finalmente buscá-lo.
Já estavam à espera dele, reunidos ao redor da precária mesa, quando Joe o fez entrar na sala. Stormgren observou, divertido, que o seu carcereiro estava usando, de maneira ostensiva, uma enorme pistola, que antes nunca exibira. Os dois capangas tinham desaparecido e o próprio Joe parecia algo contido. Stormgren viu imediatamente que tinha agora diante dele homens de muito maior calibre e o grupo a sua frente lembrou-lhe uma foto que vira de Lênin e seus colaboradores, tirada nos primeiros dias da Revolução Russa. Havia a mesma força intelectual, a mesma determinação férrea, a mesma inexorabilidade naqueles seis homens. Joe e os da sua espécie eram inofensivos: ali estavam os cérebros ocultos da organização.
Com um breve aceno de cabeça, Stormgren dirigiu-se para a única cadeira vazia e procurou aparentar segurança. Ao se aproximar, o homem idoso e atarracado, sentado no outro extremo da mesa, inclinou-se para a frente e fixou nele os olhos cinzentos e penetrantes. Aquele olhar desconcertou de tal maneira Stormgren, que ele falou primeiro, coisa que não pretendia fazer.
— Suponho que tenham vindo discutir os termos de meu resgate. Quais são eles?
Reparou que, um pouco atrás, alguém anotava suas palavras num bloco de estenografia. Tudo muito comercial.
O líder replicou, num sotaque musical, que Stormgren identificou como sendo galês:
— Pode pôr as coisas assim, senhor secretário-geral, mas nós estamos interessados em informações, não em dinheiro.
Então é isso, pensou Stormgren. Ele era um prisioneiro de guerra e aquele era seu interrogatório.
— O senhor conhece nossos motivos — continuou o outro com sua voz suave. — Pode nos chamar um movimento de resistência, se quiser. Acreditamos que, mais cedo ou mais tarde, a Terra terá que lutar pela sua independência, mas compreendemos que essa luta só poderá utilizar métodos indiretos, como a sabotagem e a desobediência. O senhor foi seqüestrado em parte para mostrar a Karellen que não estamos brincando e somos bem organizados, mas principalmente porque o senhor é o único homem capaz de nos dizer algo sobre os Senhores Supremos. Sabemos que é um homem inteligente, Sr. Stormgren. Coopere conosco e terá de volta a liberdade.
— O que, exatamente, desejam saber? — perguntou cautelosamente Stormgren.
Aqueles olhos extraordinários pareciam penetrar-lhe a mente. Stormgren nunca vira olhos iguais. A voz cantada respondeu:
— Saber quem, ou o quê, são os Senhores Supremos! Stormgren por pouco não sorriu.
— Creiam — disse ele — que estou tão curioso por descobrir isso quanto os senhores.
— Isso quer dizer que responderá a nossas perguntas?
— Não prometo nada. Talvez.
Joe deixou escapar um suspiro de alívio e um sussurro de antecipação perpassou a sala.
— Temos uma idéia geral — continuou o outro — das circunstâncias em que o senhor se encontra com Karellen. Mas gostaríamos que as descrevesse minuciosamente, sem deixar de lado nenhum pormenor importante.
Não havia nada de mal naquilo, pensou Stormgren. Já o tinha feito muitas vezes e daria a impressão de que estava cooperando. Estava em presença de intelectos aguçados e talvez eles pudessem revelar-lhe algo de novo. Apreciariam qualquer informação que pudessem tirar dele — desde que lhes fosse útil. Stormgren não acreditava que pudesse prejudicar Karellen.
Apalpou os bolsos e retirou um lápis e um velho envelope. Desenhando ao mesmo tempo que falava, principiou:
— Sabem, sem dúvida, que uma pequena máquina voadora, sem quaisquer meios visíveis de propulsão, vem me buscar a intervalos regulares e me leva à nave de Karellen. Penetra o casco; devem ter visto os filmes telescópícos que foram tomados dessa operação. A porta volta a se abrir — se se lhe pode chamar uma porta — e eu entro numa pe-
quena sala, com uma mesa, uma cadeira e uma tela. A disposição é mais ou menos a seguinte.
Empurrou o envelope para o velho galês, mas os estranhos olhos não se mexeram. Continuaram fixos no rosto de Stormgren: algo parecia ter mudado neles. Fizera-se silêncio na sala. Atrás de si, Stormgren ouvia Joe respirar forte.
Intrigado e aborrecido, Stormgren olhou bem para o outro e, ao fazê-lo, entendeu por fim. Foi tal sua confusão, que amassou o envelope numa bola de papel e calcou-a debaixo do sapato.
Sabia agora por que aqueles olhos cinzentos o tinham afetado tanto: o homem à sua frente era cego.
Van Ryberg não fizera mais tentativas de entrar em contato com Karellen. Grande parte do trabalho de seu departamento — a divulgação de informações estatísticas, as relações com a imprensa mundial e coisas afins — continuara como se nada tivesse acontecido. Em Paris, os advogados prosseguiam discutindo a redação de uma Constituição Mundial, mas de momento ele nada tinha com isso. Só dali a uma quinzena o supervisor queria ler a minuta final: se então não estivesse pronta, Karellen sem dúvida agiria como achasse conveniente.
E nada de notícias, ainda, de Stormgren.
Van Ryberg estava ditando, quando o telefone de emergências começou a tocar. Atendeu, impaciente, escutou, com espanto crescente, pousou o fone e correu para a janela. A distância, gritos de surpresa se elevavam das ruas e o trânsito estava se engarrafando.
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