Não falaria senão brevemente da minha quarta descida à cripta se ela quase não me custasse a vida. Isto foi o princípio dá minha plena aceitação, como ser humano de raça superior, pelos Sinzus. Excetuando Ulna e seu irmão, eles tinham ainda por mim uma certa desconfiança. Pela minha parte, eu não lhes perdoava, porque a bordo da astronave tive ocasião de ver alguns Telms, e lhe asseguro que, fora o físico e o cabelo, em nada se pareciam comigo: assemelhavam-se mais a um hipotético cruzamento de gorila e de australiano.
Fomos para a ilha Sanssine na astronave. Esta movia-se quase tão docemente como um ksill. Não fui admitido na cabina de pilotagem. Um ksill dos maiores, pilotado por Souilik, transportava o Conselho dos Dezenove.
Como não havia lugar na pista da ilha para aparelhos tão grandes, descemos no mar, fazendo o transbordo em botes. Foi a primeira vez — e última — que utilizei este meio de transporte em Ella.
Fui o primeiro a entrar na cripta, seguido de Akéion, de Ulna e dum jovem Hiss, de quem me esqueci o nome, que devia servir de cobaia. Tinha na cabeça o capacete de que me servira já.
Enquanto estive só na cripta o Mislik não reagiu. Era evidente que me reconhecia e sabia que toda a irradiação era inútil. Não me transmitiu nenhum sentimento de ódio, mas somente uma vaga curiosidade. Nem sequer se mexeu.
Depois entraram os outros, seguidos de uma dezena de autômatos Eu tinha perguntado a Assza porque não nos protegiam com zonas repulsivas, mas estas não se podiam estabelecer num lugar confinado sem o aquecer. Eu era o único armado de uma» pistola de «calor frio».
Entretanto, os meus companheiros entraram. Mal passaram a porta, o Mislik precipitou-se, rente ao chão, emitindo com toda a sua fôrça. O Hiss desmaiou ao fugir para a saída. Os Sinzus resistiram como eu, mas, em vez de recuarem imediatamente, precipitaram-se para mim, ocultando-me o Mislik. Este não perdeu tempo, e nalguns segundos fez um verdadeiro massacre nos autômatos Quando pude disparar, um só deles se mantinha de pé. Calmamente, o Mislik dirigiu-se para o túnel de saída e bloqueou-o. Éramos seus prisioneiros.
Não me assustei, sabendo que, se fosse necessário, todo o formidável poder dos Hiss viria em nosso socorro. Mas estava inquieto com o Hiss, porque o Mislik continuava a emitir e cada segundo que passava tornava mais precária a sua sobrevivência Avisei pelo microfone de que ia tentar destruir o túnel, e, depois de fazer sinal aos Sinzus para se afastarem, dirigi-me para o Mislik, de pistola em punho.
Ele brilhava tênuamente na penumbra. Pronto para me esquivar, atirei. O Mislik recuou. Atirei outra vez. Recuando sempre, entrou na antecâmara. Segui-o, e isto ia causando a minha perda. Ele lançou-se sobre mim, e neste espaço apertado tive um trabalho enorme para o evitar. Felizmente o meu capacete estava sintonizado, e por isso encontrava-me em guarda contra estes ataques, por uma maior recepção do sentimento de hostilidade. Esta estranha luta durou uns bons cinco minutos. Por fim o Mislik deslizou pelo túnel e eu lancei-me em sua perseguição. Choquei com o autômato que transportava o Hiss desmaiado e perdi uma dezena de segundos. Este atraso ia custando a vida aos Sinzus. Quando entrei na cripta, Ulna estava colada na parede, com Akéion a protegê-Ia, e o Mislik, somente a uns escassos metros, preparava-se para os esmagar. Disparei seis vezes, O Mislik voltou-se para mim e atacou. Só tive tempo de ver acender-se a cegante luz quente, senti um choque e mergulhei na escuridão.
Devo passar em branco um espaço de trinta dias, pela boa razão de. que durante estes trinta dias não tive a mínima idéia do que se passava a minha volta. Tinha Uma dezena de ossos quebrados pelo choque com o Mislik e quase metade do corpo gelado, em consequência de vários rasgões no meu escafandro.
Acordei numa cama, num quarto desconhecido, de paredes metálicas. Estava deitado de costas e, por cima de mim, um grande funil quadrado irradiava uma luz violácea, emitindo um zumbido contínuo. Me sentia muito fraco, mas sem nenhuma dor. Pretendi me mover mas verifiquei que os membros estavam imobilizados em talas. Chamei, em hiss.
Foi um Sinzu que veio. Era desconhecido para mim. Tinha os cabelos brancos, de um branco terno, como os nossos na velhice, e não o branco-platinado dos Hiss.
Inclinou-se para mim, observando qualquer coisa que eu não podia ver, sorriu e disse algumas palavras. O zumbido mudou de tom e a luz tornou-se verdadeiramente violeta. Senti um formigueiro contínuo e as fôrças pareceram, lentamente, voltar.
Ele saiu, deixando-me só. Foi fácil para mim reconstituir os fatos: tinha sido ferido gravemente e estava num hospital sinzu, possivelmente a bordo da astronave.
Recaí numa sonolência agradável. Ao fim dum certo tempo, que fui incapaz de calcular, o Sinzu reapareceu, desta vez com Szan. O Hiss explicou-me o que se tinha passado: apenas atingido pelo Mislik, este, devido ao efeito da luz quente — que se acendeu depois e não antes do choque, como eu supunha ficou fora de combate. Fui levantado por Ulna e o irmão e levado para a antecâmara num estado lastimável.
Estava moribundo quando fui transportado para a astronave. Os Sinzus quiseram me tratar, primeiro porque não estava em condições de ser transportado, em seguida porque, no fim de contas, tinha salvo o filho e a filha do chefe, e, finalmente, porque parecia estar eu, fisiologicamente, mais perto deles do que dos Hiss. Até que ponto isto era certo foi revelado pelo exame químico-histo-biológico a que fui submetido de urgência, enquanto era mantido vivo artificialmente por aparelhos que ultrapassavam tudo o que tinha visto em Ella.
Tinha um protoplasma absolutamente idêntico ao deles, de modo que não hesitaram um segundo em fazer-me hétero-greffes, coisa que nós não sabemos ainda fazer. Eles são mestres nesta arte e têm sempre em reserva matéria-prima viva, se assim posso chamar.
Na verdade, salvo o fato de eles não possuírem senão quatro dedos, característica que num cruzamento com a nossa espécie desapareceria, são menos diferentes de nós, Europeus, do que o Chinês.
Breve estava curado, graças aos cuidados de Vicédom, o seu grande médico. Seria injusto esquecer o papel de Szzan, a quem eu tinha ensinado um pouco de medicina terrestre, e que o aconselhou, e o de Ulna, encarregada durante longos dias da vigilância do extraordinário coração artificial, de sua invenção.
A partir do momento em que recuperei a consciência já me levantava. Tive, com a ajuda dum capacete amplificador, demoradas conversas com Ulna, seu irmão e seu pai, e comecei a aprender a língua deles Consegui assim alguns pormenores sobre o planeta Arbor e a raça sinzu.
Os Sinzus, muito avançados sob o ponto de vista científico, têm uma curiosa organização social, herdada dos antepassados. Antigamente todas as famílias sinzus eram nobres e nenhum indivíduo fazia trabalhos manuais, os quais deixavam para a raça inferior dos Telms. Consagravam a vida à arte, às viagens e à guerra. Esta desapareceu há cerca de sete séculos do seu planeta e foi substituída pela investigação científica e pela exploração do Espaço. É um estranho paradoxo que nós fôssemos descobertos pelos Hiss e não pelos Sinzus, porquanto a galáxia deles, como verificamos mais tarde, não é outra senão a nossa tão próxima vizinha Andrômeda. Em verdade, de qualquer modo, as possibilidades de chegarem ao sistema solar, em meio de milhões de estrelas da nossa própria galáxia, eram das mais hipotéticas.
Hoje há cerca de 2 bilhões de Sinzus em Arbor e 350 milhões noutros planetas da sua galáxia. A organização social mantém-se aristocrática. Hélon é irmão dum shémon, isto é, qualquer coisa correspondente a um príncipe. Não há senão quatro shémons em Arbor, chefes de quatro famílias, que descendem dos últimos reis. A organização política é piramidal. No alto, os quatro shémons, semi-hereditários, no restrito sentido de que eles são sempre escolhidos nas mesmas famílias, mas não são necessariamente filhos dos shémons precedentes. Mas Ulna explicará melhor do que eu esta complexa sociedade.
Читать дальше