Assim, contrariamente ao que ensinam certos filósofos, a tristeza e o medo são os mesmos, duma extremidade a outra do universo, mas dois e dois nem sempre fazem quatro. Havia nesta impossibilidade de trocar a idéia mais simples, enquanto os sentimentos complexos passavam facilmente dum ao outro, qual-quer coisa de trágico.
Subi ao laboratório e confessei a minha semi-derrota Os Hiss não se impressionaram desmedidamente. Para eles o Mislik era o Filho da Noite, o ser odioso por definição, e o seu interesse nesta experiência tinha sido puramente científico. Não sucedia o mesmo comigo, e ainda hoje me aflijo por não ter podido, já não digo compreender, mas, ao menos, apanhar, um pouco que fosse, da essência intelectual destes seres estranhos.
Quando deixamos a ilha caía a noite. Os dois satélites de Ella brilhavam no céu crivado de estrelas. Arzi é dourada como a nossa Lua, mas Ari tem uma sinistra cor avermelhada que sempre me faz recordar um astro maléfico. Aterramos ao clarão da lua e das estrelas, sobre a grande esplanada inferior, porto da Casa dos Sábios. Na outra extremidade antevia-se a enorme massa fusiforme da astronave sinzu, brilhando francamente na noite. Para minha tristeza, não me foi permitido entrar na sala da reunião. Szzan e eu tivemos de ir pra Casa dos Estrangeiros, espécie de hotel situado nos bosques do terraço inferior.
Jantamos juntos, depois fomos passear. O nosso passeio levou-nos até as proximidades da astronave Ao fazer uma volta, fomos retidos por um pequeno grupo de Hiss.
— Não se pode ir mais longe — disse um deles — Os Sinzus guardam o aparelho e ninguém pode aproximar-se sem autorização. Mas quem é que vem com você? — perguntou ele a Szzan.
Um habitante do planeta Terra, da estrela Sol, do Décimo Oitavo Universo, o único que está entre nós no momento. Veio com Aass e Souilik. Os Milsliks não o podem matar.
— Que diz você? Será um homem da Profecia? Os Sinzus também têm o sangue vermelho, dizem, mas não conhecem os Milsliks!
— O Tsérien desceu ainda hoje na cripta da ilha Sanssine e, veja, está aqui!
— Quero ver — disse ele então.
Uma luz doce brilhou no seu ligeiro capacete. A guarda da astronave não era certamente uma brincadeira! Era a primeira vez que eu observava em Ella qualquer coisa semelhante a um exército.
— Você se parece com os Sinzus. Vi três quando desembarcaram esta tarde. Mas você é mais alto, mais pesado e tem cinco dedos nas mãos. Ah! Vou demorar ainda em poder participar nas viagens do ksill. Sou estudante ainda…
Me lembrei de que em Ella todo o indivíduo cumpria duas espécies de trabalhos, tal como Souilik, que era ao mesmo tempo oficial de ksill e arqueólogo.
Um grande grito modulado arrastou-se na noite estrelada. — Uma sentinela sinzu — disse o nosso interlocutor. Chamam-se assim todos os meios basikes. Agora sou obrigado a pedir que voltem para trás.
Reentramos na Casa dos Estrangeiros. Compunha-se de uma série de pequenos pavilhões, dispersos sob as árvores, onde se hospedavam aqueles que o Conselho tinha convocado e que viviam longe demais para voltarem todos os dias pra casa. O meu quarto era contíguo a uma sala de toalete e a uma pequena biblioteca, mas eu estava demasiadamente fatigado para ler. Agitado pelas peripécias deste estranho dia — o mais estranho que até ali passara em Ella —, fui obrigado a empregar o aparelho para fazer dormir.
Acordei muito cedo. O ar marinho era muito vivo e fresco e percebi que, ao contrário da casa de Souilik, esta possuía verdadeiras janelas, que tinham ficado abertas. Ouvia a ressaca do mar sobre as rochas da margem e o ligeiro rumor da brisa nos ramos das árvores. Descansei um momento na cama, os olhos abertos desfrutando o encanto daquela manhã elliana, tão calma.
De repente elevou-se um cântico.
Já muitas vezes tinha ouvido música hiss. Sem ser desagradável para nós, é muito elevada, muito intelectual. Este cântico não era um cântico hiss! Tinha nostalgia, a flexibilidade das melodias polinésicas, mas com maior amplitude. Tinha um ardor secreto que fazia pensar nas canções populares russas. E a voz, esta voz que passava sem esforço das notas baixas para as notas altas, não era, também, uma voz de Hiss! O cântico quebrava-se como as vagas do encontro da praia, com notas melodiosas voando rápidas e caindo fatigadas. O ser que cantava estava muito longe para que eu pudesse apanhar as palavras, que, provavelmente, não eram hiss. Mas eu sabia que esta canção falava de Primavera, de planetas esmagados por um sol ou afogados de nevoeiros, da coragem dos homens que os exploram, do mar, do vento, das estrelas, do amor e da luta, de mistério e de medo. Continha toda a juventude do mundo!
Com o coração a bater, vesti-me rapidamente, saltei pela janela. O cântico vinha da esquerda, do lado do mar. Passando através dos bosques, encontrei uma escada descendo para a margem. Frente ao mar, uma jovem cantava. O sol juntava os reflexos dourados na sua cabeça. Não podia então ser uma Hiss. A contraluz não podia distinguir a cor da sua pele. Estava vestida com uma curta túnica azul-pálida.
Precipitadamente, desci a escada a quatro e quatro, tão emocionado como quando, jovem estudante, via Sylvaine voltar a esquina da rua. Tropeçando no último degrau, caí, rolando a seus pés. Soltou um pequeno grito, cessou de cantar e deu uma gargalhada. Eu devia estar cômico, os cabelos cheios de areia, de gatinha, em frente dela. Depois o seu rir parou de repente e me perguntou num tom irritado:
— Asna éni étoé tan?
(Me voltei surpreendido. Estas últimas palavras não tinha sido Clair quem as pronunciara, mas Ulna, sua mulher).
— Sim — disse lentamente Clair —, era Ulna.
TERCEIRA PARTE: O QUE ESTÁ EM JOGO É O UNIVERSO
CAPÍTULO I
ULNA, A ANDROMEDANA
Me levantei lentamente, sem tirar os olhos da jovem. Durante um instante julguei que os Hiss tivessem feito uma nova viagem na Terra e tivessem trazido outros Terrestres. Depois me lembrei da enorme astronave, a estátua da Escadaria das Humanidades, e reparei naquela mão estreita. Me lembrei também das histórias de Souilik acerca dos Krens, do planeta Mara, quase indiscernível aos Hiss. Se estes últimos tinham os seus sósias, era possível que os homens tivessem os deles, A moça estava ainda na minha frente. Fiquei um momento mudo.
— Asna éni étoé tan, sanen tar téoé sen Telm! — disse ela então num tom colérico.
A voz dela continuava cantante e melodiosa. em francês:
— Je mexcuse, mademoiselle, de mon arrivée subite à vos pieds l Depois refleti que para ela estas palavras eram tão incompreensíveis como a sua pergunta para mim. Olhei-a então nos olhos e tentei «transmitir». Em vão. Ela me observava agora com desconfiança. Pousou a mão sobre uma fivela do. seu cinto.
Experimentei então em hiss, esperando que ela o compreendesse.
— Peço desculpa de ter lhe incomodado — disse. Reconheceu a língua em que eu me dirigira a ela e respondeu, colocando tão mal assentos tônicos como eu ao princípio:
Ssin tséhé k'on? (Quem é você?»).
A frase correta seria: «Sssin tséhé hion». Na realidade, a sua pergunta significava:
«Qual é o planeta?»
— Ari será o primeiro a brilhar esta noite — disse eu rindo.
Ela compreendeu o seu erro e pôs-se também a rir., Durante alguns minutos partilhamos do hiss, sem grande sucesso. Me mostrou então a escada e subimos para o terraço, revestido de madeira. Quando chegávamos ouvi os três assobios modulados que eram o sinal pessoal de Souilik. Ele apareceu, seguido de Essine.
Vejo que já tomou contacto com os Sinzus — me falou.
— Tomar contacto é maneira de dizer! Como fazem vocês quando aterram num planeta cujos habitantes não «recebem» e cuja língua ignoram? — É aborrecido, sobretudo quando são tão encantadores como esta Sinzu parece ser para você — disse Essine. — Mas descanse. Daqui a pouco vocês se entenderão.
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