— Depressa, entre, ou nós vamos matá-lo! gritou Assza, Acometi para a porta e penetrei na sala dos escafandros.
A luz crua extinguiu-se, a porta fechou-se e o ar entrou. Quatro Hiss, um dos quais Szzan, entraram e tiraram o escafandro de Essine. Estava pálida, mas viva.
Subi para o gabinete, encolerizado.
— Pois bem — disse a Azzlem —, estão satisfeitos? Eu ainda aqui estou, mas Essine talvez morra!
— Não. Um só Mislik não pode matar em tão pouco tempo, E se assim fosse? Quando o que está em jogo é o universo, o que conta uma vida, voluntária, de resto?
Não havia, evidentemente, nada a responder a isto. Tornaram a me fazer uma extração de sangue e uma outra numeração globular. A conclusão foi formal: as irradiações do Mislik não produziam nenhum efeito sobre mim.
Fiquei outros dois dias na ilha com Assza, pois não queria partir antes de saber se Essine ficara livre de perigo. Ela voltou, a si rapidamente, mas estava ainda muito fraca, apesar das transfusões e da passagem sob os raios biogênicos, Mas Szzan sossegou-me: já tinha tratado e salvo alguns Hiss mais gravemente atingidos.
Regressei pra pequena casa de Souilik e tudo entrou na normalidade. De dois em dois dias ia na Casa dos Sábios para dar e receber lições. Liguei-me estreitamente a Assza, o físico gigante, guarda do Mislik — o qual parecia não se ter ressentido do violento castigo que lhe infligiram —, e a Szzan, o jovem biologista. E um dia em que falávamos de irradiações humanas tive uma idéia:
— Estas ondas Phen, que emitem os Milsliks e que emito também, não poderiam servir para entrar em contacto com eles?
Szzan refletiu um momento e respondeu:
— Não creio. Nós registamos estas ondas mas ignoramos totalmente a que correspondem. Não podemos experimentar, porque nos é tão impossível aproximar dum Mislik (você viu, pelo exemplo de Essine) como passar através duma estrela!
Como você emite as mesmas ondas — ou qualquer coisa que muito se aproxima —, poderemos experimentar consigo. Mas não creio que elas tenham qualquer coisa que ver com o psiquismo. Talvez estejam, antes, relacionadas com a sua extraordinária constituição, que encerra tanto ferro!
— Tanto pior — disse — Teria, no entanto, gostado de poder entrar em comunicação com ele — Isso não é, talvez, impossível — disse então Assza —, mas é preciso ter coragem.
Você deverá voltar a descer na cripta, levando um capacete amplificador do pensamento. As ondas psíquicas — as nossas ondas psíquicas — têm um alcance muito inferior ao da irradiação mislik e nós nunca podemos nos aproximar o suficiente para saber se poderíamos «ouvir» um Mislik. O Mislik — ou o Hiss — morria antes de o conseguir. Mas você poderá se aproximar. Será necessário penetrar na cripta, porque o isolamento do ferro-níquel para tanto as ondas do pensamento — se o Mislik as emite comparáveis com as nossas — como a sua irradiação mortal.
— Seja — disse eu. — Mas se ele voa de novo?
— Fique em frente da porta. Se ele voar, você entrará na sala dos escafandros.
— Bem. Quando se tenta a experiência?
Sentia que eles estavam ainda mais impacientes do que eu próprio.
— Tenho um grande réob de quatro lugares — começou Assza. Tenho também o meu. Vamos?
Vamos lá — atalhou Szzan, o mais novo de nós três. Será necessário modificar o capacete amplificador. Tenho o que é necessário no meu laboratório da ilha — replicou Assza.
Embarcamos e fomos a toda a pressa. Assza pilotava admiravelmente e era um pouco temerário: roçávamos as montanhas. Como estivéssemos sobre o mar, descobri um enorme engenho fusoide, mas não lenticular, que descia rapidamente sobre a montanha dos Sábios.
A astronave sinzu volta — disse Szzan. Vai haver reunião do Conselho.
— Você não assiste? — perguntei a Assza. Poderíamos adiar a experiência.
— Não. O Conselho só se reunirá esta noite. Temos tempo. Virá comigo ver os seus quase-irmãos, os Sinzus.
A ilha apareceu no mar azul. Assim que descemos nos precipitamos para o laboratório. Sianssi, o assistente-chefe, observava os aparelhos registradores.
— «Ele» repousa — disse-nos —, mas tornou-se intratável desde que o Tsérien desceu.
«Ele» destruiu mais um autômato Pela primeira vez ouvi, vocalizado, o nome que os Hiss nos deram: «Tsérien», corrupção de «Terrestre».
— Faça modificar o amplificador do pensamento, a fim de que o… Tsérien possa metê-lo sob o escafandro. Vai ainda descer para tentar entrar em comunicação com «ele».
O jovem Hiss olhou-me um momento antes de sair. Eu devia fazer-lhe o efeito dum ser quase tão monstruoso como o Mislik.
Observamos o Mislik com a ajuda do écran. Não se mexia, semelhante a um bloco de metal inerte. No entanto, era um ser dum fantástico poder, capaz de apagar as estrelas!
— Observe bem ele quando você estiver na cripta disse-me Assza. — Quando eles vão voar começam sempre por levantar ligeiramente a parte da frente. Você dispõe então dum milésimo de basike aproximadamente antes do vôo. Entre imediatamente.
A transformação.do capacete durou um basike (que maçada, julgo-me ainda em Ella!). Durou, pois, mais ou menos uma hora e um quarto.
Vestido com o escafandro e com o capacete posto, penetrei na cripta, devagar. O
Mislik voltava-me as costas. Não me afastei portanto demasiado da porta e fiz o contacto.
Instantaneamente, fiquei submerso numa onda de angústia, que não vinha de mim, mas da angústia do Mislik: uma sensação terrível de isolamento, de solidão, tão grande que quase gritei. Longe de ser a criatura puramente intelectual, sem nenhum sentimento, que tinha imaginado, o Mislik era então um ser como nós, capaz de sofrer. Paradoxalmente, pareceu-me mais temível ainda, por estar tão próximo, sendo tão diferente! Não pude me conter e cortei o contacto.
E então? — perguntou Assza.
— Não pensei que ele sofresse tanto! — disse, transtornado.
— Atenção! Está acordando!
O Mislik movia-se. como da última vez, avançava, lentamente, direto sobre mim.
Restabeleci o contacto. Desta vez não foi uma mensagem de sofrimento que recebi, mas uma onda de ódio, um ódio absoluto, diabólico. O Mislik avançava sempre.
Peguei na minha pistola de calor. Ele parou, emitiu para mim um ódio ainda mais violento, que eu sentia quase fisicamente, como uma onda morna e viscosa. Então, por minha vez, emiti para ele:
— Meu irmão· de metal, — pensei não lhe quero mal. Para que é preciso que os Hiss e vocês mesmos se destruam? Por que parece a lei do mundo ser um homicídio?
Por que é preciso que uma espécie massacre a outra, um reino um outro ·reino? Não odeio você, estranha criatura. Veja, meto a minha arma no coldre!
Não julgava ser compreendido; no entanto, à medida que pensava sentia o ódio decrescer, passar a último plano, e um sentimento de surpresa substitui-lo sem o atingir. O Mislik continuava imóvel. Rememorei os ensinamentos dos filósofos pretendendo que a matéria deve ser a mesma em todo o universo, o que me parecia confirmado pelos Hiss, e pus-me a pensar em quadrados, retângulos, círculos. Recebi em resposta uma onda de espanto mais intensa, depois imagens invadiram o meu pensamento: o Mislik me respondia. Ai de mim! Tive depressa de me render a evidência: nenhuma comunicação seria sem dúvida possível; as imagens ficavam fluidas, como imagens de sonho. Me pareceu antever estranhas figuras concebidas por um espaço que não era o nosso, um espaço que fazia apelo a mais de três dimensões. Mas tão depressa pensei tê-las compreendido desvaneciam-se, deixando— me pesaroso de ter estado quase apanhando um pensamento absolutamente estranho ao nosso. Fiz uma derradeira tentativa, pensei em números, mas isto não teve melhor sucesso. Recebi, em troca, noções absolutamente incomunicáveis, incompreensíveis, com zonas isoladas, durante as quais nada recebia. Experimentei imagens, mas nada pude encontrar que acordasse nele uma ressonância, nem mesmo uma estrela resplandecente no céu negro. A noção da luz tal como nós a concebemos devia ser desconhecida para ele Interrompi então as minhas experiências, e qualquer coisa da minha melancolia devia ter chegado a ele, porque me enviou uma nova onda de angústia, já com todo o ódio extinto e um sentimento pungente de impotência. Afastou-se sem ter emitido a sua irradiação mortal.
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