– Miles – disse Nadine Bonheur, passando rapidamente do seu papel de tia incestuosa para o de mulher de negócios. – Como é, você gostou? O público vai ficar tarado, não?
– Uma beleza – declarou Fabian. – Vamos ganhar uma nota.
Evitei olhar para os outros, enquanto saíamos rumo ao elevador. Cuidei principalmente de não olhar para a jovem americana, que aparecera em todas as cenas mais vergonhosas e que eu reconheceria, mesmo com um saco por cima da cabeça, em qualquer praia de nudistas deste mundo. Constatei que Lily também estava subitamente interessada no chão do elevador.
Enquanto descíamos os Champs-Élysées, a caminho de uma cervejaria alsaciana, Nadine tomou-me o braço.
– O que você achou da mocinha? – perguntou. – Talentosa, não?
– Demais – respondi.
– Ela não é propriamente uma profissional – continuou Nadine. – Só faz filmes para pagar seus estudos na Sorbonne. Está estudando literatura comparada. As moças americanas têm mais caráter do que as européias, você não acha?
– Não posso dizer – retruquei. – Estou na Europa há apenas umas semanas.
– Você acha que o filme vai ser sucesso na América? – perguntou ela, num tom de voz preocupado.
– Estou muito otimista – respondi.
– Receio que o filme tenha demasiada classe para a platéia comum.
– Se fosse eu, não me preocuparia – retruquei.
– Miles também acha – disse Nadine, apertando-me o braço por motivos ambíguos. – Ele é maravilhoso no sei. Tem sempre um sorriso para todo mundo. Você também precisa aparecer no set. O ambiente é uma beleza. Um por todos e todos por um. E como eles trabalham! Horas extras, e nunca uma queixa. Naturalmente, os salários são muito pequenos, os astros recebem apenas uma porcentagem dos lucros, o que ajuda muito. Que tal aparecer amanhã? Vamos filmar uma cena em que Priscilla está vestida de freira…
– Vim a Paris a negócios – falei. – Estou tremendamente ocupado.
– Então, venha outro dia qualquer. Será sempre bem-vindo.
– Obrigado – falei.
– Acha que a censura americana vai deixar passar o filme? – perguntou ela, novamente preocupada.
– Imagino que sim. Pelo que ouço dizer, deixam passar tudo, hoje em dia. Há sempre a chance, é claro, de que um chefe de polícia local implique com o filme e mande fechar o cinema em que esteja sendo exibido. – Ao dizer isso, percebi que também tinha razões para me preocupar. Se eu fosse um chefe de polícia local, mandaria queimar o filme, mesmo contra a lei. Mas eu não era um policial. Era, quisesse ou não, um investidor. De quinze mil dólares. Procurei não parecer preocupado. – E na França? – perguntei. – Será liberado?
– Nunca se sabe – disse ela, apertando-me de novo o braço. – Um bispo gagá faz um sermão no domingo e, no dia seguinte, todos os cinemas podem fechar. E se a mulher do presidente ou de um ministro cisma com um cartaz… Você não tem idéia de como o povo francês é atrasado com respeito a arte. Felizmente, há sempre um novo escândalo, a cada semana, para distrair a atenção dos burgueses. – De repente, ela parou, soltando-me o braço. Recuou dois passos e olhou-me dos pés à cabeça. – A olho nu – observou – você parece muito bem-feito. Estarei errada?
– Costumava esquiar um bocado – falei.
– Ainda não arranjamos ninguém para o papel do vilão – prosseguiu Nadine. – Ele tem duas cenas muito interessantes. Uma com Priscilla e outra com Priscilla e uma moça núbia… Talvez lhe agradasse.
– Ela está lhe oferecendo trabalho, Douglas – disse Miles, sua voz ressoando no ruído do trânsito. – Proteja seu investimento.
– É muita gentileza de sua parte, madame – respondi a Nadine -, mas se minha mãe, lá nos Estados Unidos, visse o filme, receio que… – Senti vergonha de meter minha falecida mãe no assunto, mas achei que era a maneira mais rápida de pôr fim à conversa.
– Priscilla também tem a mãe na América – atalhou Nadine.
– Sim, mas nem todas as mães de lá são iguais. Eu sou filho único – expliquei, bobamente.
– Ora, aceite o papel – disse Lily. – Eu ajudo você a decorar as falas, no set. E poderíamos ensaiar as cenas mais difíceis no hotel.
– Sinto muito – respondi, furioso com ela. – Gostaria de aceitar, mas a qualquer momento posso ter que sair de Paris.
Nadine deu de ombros.
– O mal desses filmes – disse ela – é que as caras são sempre as mesmas. Sempre o mesmo equipamento, sempre os mesmos orgasmos. Talvez numa outra ocasião. Você tem algo… uma sexualidade oculta, como um jovem padre… Não acha Lily?
– Acho – confirmou Lily.
– Resultaria encantadoramente perverso – prosseguiu Nadine. – Inocentemente depravado. Os bispos rangeriam os dentes.
– Fica para outra vez – prometi.
– Vou cobrar de você. – E Nadine lançou-me o seu incorruptível sorriso de colegial.
Os dois chopes que tomara, um logo após o outro, pareciam ter estimulado o crítico barbudo. Pôs-se a falar excitadamente em francês com Nadine.
– Philippe – pediu ela -, fale em inglês. Temos convidados.
– Estamos na França, não estamos? – retrucou Philippe em voz bem alta, por entre a barba. – Por que eles não hão de falar francês?
– Porque somos uns anglo-saxões estúpidos, meu caro – respondeu Lily. – E, como todo francês sabe, mal-educados.
– Ele fala inglês muito bem – disse Nadine. – Muito bem. Esteve dois anos na América. Em Hollywood. Escrevia críticas para os Cahiers du Cinema.
– Gostou de Hollywood? – perguntou Fabian.
– Detestei.
– E os filmes?
– Detestei.
– Gosta dos filmes franceses? – perguntou Lily.
– O último de que eu gostei foi Acossado – respondeu Philippe, emborcando a cerveja.
– Isso foi há dez anos – disse Lily.
– Mais – corrigiu Philippe.
– Ele é muito exigente – explicou Nadine. – E também político.
– Quantas e quantas vezes – disse ele furioso, virando-se para ela – eu já lhe disse que as duas coisas são inseparáveis?
– Demasiadas vezes. Não seja emmerdeur [2] , Philippe. Ele simpatiza com a China – explicou-nos Nadine.
– Gosta de filmes chineses? – perguntou Lily, que parecia deliciar-se em provocar o homem, no seu jeito tranqüilo de dama.
– Não vi nenhum… ainda – respondeu o homem. – Estou esperando. Há cinco, há dez anos. – Seu inglês, apesar da pronúncia estrangeira e das incorreções, era fluente. Seus olhos coruscavam. Era o tipo do sujeito que seria capaz de discutir até em sânscrito. Tive a impressão de que, se alguma vez encontrasse alguém que concordasse com ele, sairia furioso da sala.
– Escute aqui, meu velho – disse Fabian, num tom de voz cordial. – O que você achou do nosso filmezinho, até agora?
– Une merde.
– É mesmo? – Lily fingiu surpresa.
– Philippe – avisou Nadine. – Priscilla entende francês. Você não quer desencorajá-la, quer?
– Não faz mal – disse Priscilla, na sua voz de soprano do oeste americano. – Eu nunca levo a sério o que um francês diz.
– Estamos na cidade onde Racine apresentou Phèdre, onde Molière morreu – recitou o crítico. – Onde Flaubert foi ao tribunal defender Madame Bovary, onde houve tumulto nas ruas após a primeira apresentação de Hernani, onde Heine foi aplaudido pela sua poesia em outra língua e Turguêniev encontrou uma segunda pátria, – A barba de Philippe estava eletrizada pela discussão, os grandes nomes escorriam-lhe, deleitosos, da língua. – No nosso tempo e no mesmo campo, o cinema, temos a nosso crédito pelo menos A grande ilusão, Pega-Fogo, Brinquedo proibido. Mas esta noite nos reunimos para discutir o quê? Uma tentativa cômica e de mau gosto de despertar as nossas mais baixas emoções…
Читать дальше