Peguei o envelope e coloquei-o no bolso de dentro do paletó. Estava ligado a ela, mesmo que apenas pela recordação de uma única noite, e ela sabia disso. Se se sentia ligada a mim, era outra história. – Não vou abri-lo.
– Tinha certeza de que podia contar com você, Grimes – retrucou ela.
– Da próxima vez em que nos encontrarmos – falei -, por favor, trate-me pelo meu primeiro nome.
– Combinado – disse ela. Olhou para o relógio. – Se você já terminou o café – acrescentou -, pago e podemos ir. Tenho um encontro na Virgínia.
– Oh! – exclamei, procurando não parecer muito desapontado. – Pensei que poderíamos passar a tarde juntos.
– Acho que vai ter que ficar para outra vez – disse ela.
– Se não quiser passar a tarde só, acho que Brenda, minha colega de apartamento, está com a tarde livre. Ela achou você muito simpático. Por que não lhe telefona?
– Talvez – disse eu, grato pelo fato de o restaurante estar na penumbra. Tinha certeza de que corara. Mas a sugestão dela irritou-me. – Seus amantes são sempre compartilhados?
Ela olhou firme para mim, absolutamente calma.
– Acho que já lhe disse uma vez que você não era meu amante. – E chamou o garçom para lhe trazer a conta.
Não telefonei para a colega de Evelyn. Resolvi não lhe dar essa satisfação. Passei a tarde passeando por Washington. Agora que sabia, pelo menos por alto, o que havia por trás daquelas imponentes colunas, dos longos corredores, daquelas cópias de templos gregos, não me sentia impressionado. Roma, pensei, pouco antes da invasão dos godos. Ocorreu-me que talvez nunca mais eu voltasse, embora a idéia não me entristecesse. Mas, pela primeira vez em três anos, senti-me horrivelmente só.
Ao entrar no hotel, ao anoitecer, decidi sair de Washington naquela mesma noite. Quanto mais cedo eu saísse do país, melhor. Arrumando as malas, lembrei-me do clube de esqui de George Wales. Qual era mesmo o nome? O Christie Ski Club. Não era preciso preocupar-se com excesso de bagagem, nem com a alfândega suíça, e a bordo, se podia tomar, grátis, tudo quanto era bebida. Não tinha a intenção de chegar economicamente bêbado e pisar em solo europeu, trocando as pernas, mas, com a bagagem que eu ia levar, passar pela alfândega suíça com um sorriso de boas-vindas tinha as suas atrações. Além disso, se alguém estivesse procurando o funcionário que tinha fugido do Hotel St. Augustine com cem mil dólares em notas de cem, o último lugar em que se lembrariam de procurar seria o balcão onde trezentos e cinqüenta gárrulos suburbanos estariam embarcando para uma temporada de neve na Suíça, da qual retornariam em massa dali a três semanas para os Estados Unidos.
Ia fechar a segunda mala, quando o telefone tocou. Não estava com vontade de falar com ninguém, de modo que deixei tocar. Mas tocou tanto, que acabei atendendo.
– Sei que você está aí… – Era a voz de Evelyn Coates. – Estou aqui no bali e perguntei na portaria se você estava no hotel.
– Que tal a Virgínia? – perguntei, secamente.
– Digo-lhe quando subir. Posso subir, não posso? – perguntou ela, hesitante.
– Acho que sim – respondi.
Ela riu, risinho triste.
– Não brigue comigo – falou. E desligou.
Abotoei o colarinho de minha camisa, endireitei a gravata e vesti o paletó, pronto para todas as formalidades.
– Horrível! – exclamou ela, mal entrou no quarto e olhou em volta. – A era do cromado.
Ajudei-a a tirar o casaco, porque ela ficou de pé, com os braços abertos, como se estivesse à espera.
– Não pretendo passar o resto da minha vida aqui – falei.
– Estou vendo – retrucou ela, olhando para a mala fechada, sobre a cama. – Já está indo embora?
– Estava.
– Pretérito imperfeito.
– É. – Estávamos de pé, um diante do outro.
– E agora?
– Não estou assim com tanta pressa. – Não fiz o menor esforço para pô-la à vontade. – Pensei que você havia dito que tinha um encontro, hoje à tarde… na Virgínia.
– E tive – disse ela. – Mas durante a tarde ocorreu-me que havia uma pessoa que eu tinha uma vontade louca de ver e que essa pessoa estava em Washington. Por isso é que estou aqui. – Sorriu hesitantemente. – Espero não estar incomodando.
– Ora! – falei.
– Não vai me convidar para sentar?
– Desculpe – falei. – Claro.
Ela sentou-se, com graça feminil, cruzando os tornozelos. Devia ter andado no frio da Virgínia, porque tinha as faces rosadas.
– Que mais lhe ocorreu? – perguntei, ainda de pé, mas a boa distância dela.
– Algumas coisas mais – respondeu ela. Estava usando luvas de dirigir marrons e descalçou-as, deixando-as cair no regaço. Seus longos dedos, ágeis com as cartas, hábeis com os homens, brilhavam à luz do abajur sobre a mesa ao lado dela. – Não gostei da maneira como lhe falei, ao almoço.
– Já ouvi coisas piores – comentei.
– Tudo no mais puro e cínico washingtonês. – Meneou a cabeça. – É preciso defender-se a todo momento. Deformação profissional da maneira de falar. Mas não precisava me defender de você. Desculpe.
Aproximei-me e beijei-lhe o alto da cabeça. O cabelo dela cheirava a campo no inverno.
– Não tem de que pedir desculpa. Não sou assim tão frágil.
– Talvez eu ache – disse ela. – Naturalmente, você não ligou para Brenda.
– Lógico que não.
– Que coisa estúpida eu fui dizer! – Suspirou. – Nos fins de semana, preciso aprender a deixar a armadura em casa. – Sorriu para mim, seu rosto suave e jovem à luz do abajur.
– Esqueça o que eu lhe disse, está bem?
– Se você quiser. Que mais lhe ocorreu, lá na Virgínia?
– Que a única vez em que tínhamos dormido juntos tínhamos ambos bebido demais.
– Sem dúvida.
– Pensei que seria ótimo nos amarmos sem ter bebido. Você bebeu alguma coisa depois do almoço?
– Não.
– Eu também não – disse ela, levantando-se e abraçando-me.
Dessa vez, permitiu que eu a despisse. No meio da noite, ela murmurou:
– Você deve ir embora logo de manhã. Se ficar mais um dia, talvez eu não o deixe ir. E isso não é possível, não?
Quando acordei, de manhã, ela já se fora. Deixara um bilhete em cima da mesa, escrito na sua letra oblíqua e ousada.
"O fim de semana acabou. Já é segunda-feira. Por favor, não leve a sério nada do que eu disse. E."
Vestira a armadura para mais uma semana de trabalho. Amassei o bilhete e joguei-o na cesta de lixo.
Apanhei o passaporte no dia seguinte. O Sr. Hale não estava em seu gabinete, disse a Srta. Schwartz, mas deixara todas as instruções. Eu estava quase certo de que ele não estava em seu gabinete, porque, no fim de semana, chegara à conclusão de que não se sentiria bem se me visse de novo. Pelo menos, na presença da Srta. Schwartz. Não era a primeira vez que um homem se arrependia, à luz do dia, das confidências que fizera à meia-noite.
A Srta. Schwartz estava tão linda e melodiosa como da primeira vez, mas não senti inveja de Jeremy Hale.
Descontei os cheques do jogo de pôquer e, munido do dinheiro, dirigi-me a uma loja de departamentos e comprei duas malas fortes, mas leves e bonitas, azul-escuras com debruns vermelhos, uma grande, outra pequena. Custaram-me caro, mas eu queria malas seguras e não pechinchas. Comprei também uma espaçosa pasta de couro modelo 007, com fecho bem resistente e que cabia dentro da maior das duas malas. Sentia-me agora armado para viajar, Ulisses com seus navios calafetados e vento favorável, perigos desconhecidos esperando-o no próximo promontório.
O vendedor perguntou que algarismos eu queria pôr na combinação.
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