– Meu Deus! – exclamei. – Pensei que você estava indo muito bem.
– Eu represento bem – disse Hale, desanimado. – Tenho de representar. Sou um bom mentiroso. É um governo de mentirosos, de modo que adquirimos muita prática. Sou um feliz funcionário público, um marido, um genro e um par feliz… Puxa, mas por que estou lhe contando tudo isto? Imagino que você também tenha problemas de sobra.
– Não no momento – falei. – Se a coisa é assim tão má, por que você não pede demissão? Faça outra coisa!
– Fazer o quê? – retrucou ele. – Vender gravatas?
– Algo apareceria. – Não lhe disse que talvez houvesse um lugar como recepcionista noturno em Nova York. – Peça uns meses de licença, procure e…
– Com que dinheiro? – Riu ele. – Não tenho um tostão. Você viu como eu vivo. Meu ordenado cobre apenas a metade. Meu venerando sogro entra com o resto. Quase teve um ataque quando me mandaram voltar da Ásia. Poria fogo à casa, comigo dentro, se eu lhe dissesse que ia pedir demissão. Dois meses depois, minha mulher e as crianças estariam morando com ele… Ora, esqueça, esqueça, não sei por que, de repente, fui falar em tudo isso. Foi aquele canalha do Benson. Vejo-o multiplicado por mil cada vez que vou trabalhar, de manhã. Que diabo… não preciso continuar a jogar pôquer aos sábados. Pelo menos, com um Benson não precisarei mais falar. – Riu baixinho. – Se eu tivesse ganho esta noite, talvez agora estivesse lhe dizendo que boa vida a gente leva aqui em Washington.
Ele guiava cada vez mais devagar, como se não quisesse ficar sozinho ou ter de ir para casa e enfrentar os fatos concretos de que tinha mulher, filhos, carreira e sogro. Eu também não estava com pressa de voltar ao meu quarto de hotel. Não queria olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira e lutar contra a tentação de pedir para a telefonista ligar para o número de Evelyn Coates.
– Será que você me faz um favor, Doug? – disse ele, quando já estávamos próximos do hotel.
– Claro – respondi, mas logo me arrependi. Depois da conversa no carro, não tinha a menor vontade de me imiscuir, mais do que fosse absolutamente necessário, na vida e nos problemas do meu ex-colega Jeremy Hale.
– Venha jantar conosco amanhã à noite – disse ele – e dê um jeito de dizer que está pensando em esquiar em Vermont nas duas primeiras semanas do mês que vem e gostaria que eu fosse com você.
– Acho que já não vou estar no país – retruquei.
– Não faz diferença – disse ele, calmamente. – Só lhe peço para dizer isso, de modo a que minha mulher possa ouvir. Vou ter duas semanas livres e quero aproveitar para sair.
– Vai me dizer que precisa arranjar pretextos para sair…?
– Não é bem isso – disse ele, suspirando. – É bem mais complicado. Há uma moça no meio…
– Oh!
– Pois é – disse ele, rindo forçadamente. – Também não parece coisa minha, não? – perguntou em tom desafiante, como se me estivesse acusando de algo.
– Para dizer a verdade, não – concordei.
– E não, mesmo. É a primeira vez, desde que me casei… Nunca pensei que isto aconteceria. Mas aconteceu e está me pondo maluco. Só nos encontramos algumas vezes… alguns minutos, uma hora, aqui e ali, sempre nos escondendo. Está dando cabo dos dois. Numa cidade como esta, com gente sempre espionando os outros. Precisamos de algum tempo para estar juntos. Deus sabe o que minha mulher faria se alguém lhe contasse! Eu não queria que isso acontecesse, juro por Deus, mas aconteceu. Sinto como se minha cabeça fosse explodir. Não posso falar com ninguém nesta cidade. É como se eu estivesse vivendo com uma pedra em cima do peito, dia após dia. Nunca pensei que seria capaz de me sentir assim por causa de uma mulher… Acho que não há mal em lhe dizer quem é…
Esperei, com o terrível pressentimento de que ele fosse dizer o nome de Evelyn Coates.
– É aquela moça que trabalha no meu escritório – murmurou ele. – Srta. Schwartz. Melanie Schwartz. Meu Deus, que nome!
– Apesar do nome – falei -, posso entender. Ela é linda.
– É bem mais do que isso – afirmou ele. – Vou dizer-lhe uma coisa, Doug… se as coisas continuarem assim como estão, não sei o que vou acabar fazendo. Temos de sair juntos desta cidade… por uma semana, uma quinzena, uma noite… mas temos… Não quero o divórcio. Estou casado há dez anos, não quero… Ora, não sei por que cargas-d'água estou lhe contando tudo isto.
– Vou jantar com vocês amanhã à noite – prometi.
Hale não disse nada. Parou em frente do hotel.
– Espero você por volta das sete – disse calmamente, enquanto eu saía do carro.
No elevador, a caminho do meu andar, pensei: "Afinal de contas, Scranton não fica assim tão longe de Washington".
Enquanto me aprontava para ir para a cama, evitei aproximar-me do telefone. Demorei muito tempo para dormir. Acho que estava esperando que o telefone tocasse. Mas não tocou.
Não saberia dizer se o telefone me tinha acordado ou se eu tinha aberto os olhos pouco antes de ele começar a tocar. Tinha tido um pesadelo estranho, no qual eu me escondia e fugia de perseguidores invisíveis e desconhecidos, através de florestas escuras, para de repente me ver ao sol, entre fileiras de casas em ruínas. Fiquei, feliz por ter acordado e estendi com gratidão a mão para o telefone. Era Hale.
– Não o acordei, não? – perguntou ele.
– Não.
– Escute – disse ele. – Acho que vamos ter que cancelar o jantar de hoje à noite. Minha mulher diz que fomos convidados para jantar fora. – Seu tom de voz era displicente e despreocupado.
– Não faz mal – falei, procurando não mostrar o alívio que sentia.
– Além disso – continuou ele -, falei com a moça… – O resto da frase foi abafado por um barulho em crescendo.
– Que barulho é esse? – perguntei, lembrando-me do que ele me dissera sobre os telefonemas serem gravados em Washington.
– É um leão rugindo – respondeu ele. – Estou no Jardim Zoológico com meus filhos. Quer vir se encontrar conosco?
– Fica para outra vez, Jerry – disse eu. – Ainda estou na cama. – Após a confissão no carro, depois do jogo de pôquer, não me agradava a idéia de o ver desempenhar o papel do pai exemplar, dedicando a manhã de domingo aos filhos. Nunca gostara de cumplicidades e repugnava-me ser utilizado para enganar crianças.
– Espero por você amanhã no escritório – disse ele. – Não se esqueça de trazer a certidão de nascimento.
– Não vou me esquecer – prometi.
O leão estava rugindo quando desliguei.
Eu estava no chuveiro quando o telefone voltou a tocar. Pingando e ensaboado, enrolei-me numa toalha e atendi.
– Alô! – disse a voz. – Esperei o máximo que pude. – Era Evelyn Coates. No telefone, sua voz era uma oitava mais grave. – Tenho de sair de casa. Pensei que você talvez estivesse tentado a me ligar ontem à noite, depois do jogo. Ou hoje de manhã. – Sua autoconfiança era irritante.
– Não – disse eu, inclinando-me para trás, procurando evitar que a água pingasse na cama. – Não me ocorreu – menti. – Aliás, você parecia algo preocupada.
– O que você vai fazer hoje? – perguntou ela, ignorando a queixa.
– No momento, estou tomando um banho de chuveiro. – Sentia-me em desvantagem, tentando retrucar àquela voz grave e provocante, com a água escorrendo-me, fria, pelas costas abaixo e os olhos começando a lacrimejar por causa da espuma de sabonete que entrara.
– Como você é gentil! – exclamou ela, rindo. – Saiu do chuveiro para atender o telefone. Sabia que era eu, não sabia?
– Acho que me passou pela cabeça.
– Posso convidá-lo para almoçar?
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