– Como foi isso?
– Fui a um especialista da fala – respondi. Era uma explicação tão boa quanto qualquer outra.
– Que maravilha! Você deve sentir-se muito feliz.
– É – falei. – Sinto-me realmente feliz. Boa noite, Hank.
Ele tornou a levantar o vidro, e o táxi partiu, levando dentro o irmão que, segundo minha mãe, era o único que tinha nascido para ser rico e bem-sucedido.
Respirei profundamente o ar gélido da noite e estremeci, recordando as cálidas camas de Washington. Depois, entrei, tomei o elevador para o meu quarto e fiquei horas vendo televisão, comerciais anunciando objetos que eu jamais compraria.
Nessa noite, dormi mal, perseguido por visões fugidias de mulheres e funerais.
O telefone, tocando na mesinha-de-cabeceira, acabou com meus pesadelos. Olhei para o relógio. Eram apenas sete e meia da manhã.
– Doug… – Quem estava falando era Henry. Não poderia ser outra pessoa. Ninguém mais sabia onde eu estava. – Doug… preciso falar com você.
Suspirei. Sentia que tínhamos esgotado todos os assuntos na noite anterior, que podíamos passar outros cinco anos sem nos vermos.
– Onde é que você está? – perguntei.
– Aqui embaixo, no hall . Você já tomou o café da manhã?
– Não.
– Vou esperar por você no restaurante. – E desligou antes que eu pudesse responder.
Ele estava tomando uma xícara de café preto, sozinho no restaurante iluminado a neon. Lá fora ainda estava escuro. Henry sempre fora madrugador. Era outra das virtudes que meus pais sempre elogiavam.
– Desculpe se o acordei – disse ele, mal me sentei. – Precisava falar-lhe antes que você fosse embora.
– Não faz mal – falei, lembrando-me vagamente dos pesadelos que tinha tido. – Não dormi muito bem.
A garçonete aproximou-se e eu pedi que me trouxesse o desjejum. Henry pediu apenas uma segunda xícara de café.
– Escute, Doug – disse ele, assim que a garçonete se afastou. – Ontem à noite, você disse algo quando… quando me deu todo aquele dinheiro. Não vá pensar que não estou grato…
– Esqueça. – Fiz um gesto impaciente com a mão. – Não vamos falar nisso.
– Você disse… e eu não posso esquecer… você disse que, se eu precisasse, havia mais dinheiro.
– Isso mesmo.
– Você falou a sério?
– Claro que falei.
– Mesmo que fossem vinte e cinco mil dólares?. – perguntou ele, corando, como se o fato de fazer essa pergunta tivesse exigido um esforço enorme.
Hesitei apenas um momento.
– Se é disso que você precisa…
– Não quer que eu lhe diga o que vou fazer com o dinheiro?
– Só se você quiser dizer-me – respondi. Arrependia-me de não ter ido embora na noite anterior.
– Quero dizer-lhe. Não é só para mim, é para nós dois… – começou, mas logo parou, vendo a garçonete se aproximar com o meu suco e o café com torradas. Quando ela terminou de servir e se afastou, ele bebeu o café fervente de um só trago. Reparei que estava suando.
– O negócio é o seguinte – disse ele. – Estou encarregado, lá no escritório, de fazer a contabilidade de uma firma nova, formada por dois caras jovens, muito inteligentes. A firma tem futuro, pode crescer muito. Eles têm uma patente para registrar, um novo sistema de miniaturização para todos os tipos de sistemas eletrônicos. Só precisam é de uns vinte e cinco mil dólares. Já estiveram nos bancos, mas não conseguiram nada. Estou por dentro da situação porque lido com os livros deles. Já falei inclusive com eles. Por vinte e cinco mil dólares, eu podia ficar com um terço das ações e continuar como tesoureiro da firma, para proteger os nossos interesses. Tão logo eles começassem a produzir, entrariam para o quadro da Amex…
– Que é isso? – perguntei.
– American Exchange – disse ele, olhando para mim com espanto. – Onde diabo você tem andado todos esses anos?
– Por aí – falei.
– As ações subiriam vertiginosamente. Eu ficaria com um terço dos trinta e três por cento e você ficaria com dois terços. Acha bom? – perguntou, ansioso.
– Acho. – Eu já tinha dito adeus aos vinte e cinco mil, embora na verdade nada daquilo fosse real para mim. Apenas pilhas de papel num cofre.
– Você é uma alma nobre, Doug! – A voz de Henry tremia de emoção.
– Ora, Hank, deixe disso! – falei. Não me sentia nada nobre. – Será que você pode estar em Nova York na quarta-feira?
– Claro!
– Vou ter o dinheiro para lhe dar… não em cheque, em dinheiro mesmo. Terça-feira ligo para o seu escritório e lhe digo onde me encontrar.
– Em dinheiro? – Henry parecia intrigado. – E por que não em cheque? Detesto andar com tanto dinheiro.
– Você vai ter que carregá-lo – retruquei. – Não gosto de cheques. – Li as reações em seu rosto. Ele desejava aquele dinheiro… desejava-o terrivelmente, mas era um homem honesto e não era bobo: não tinha dúvidas de que aquele dinheiro não era honesto.
– Doug – disse ele -, não quero que você se meta em apuros por minha causa. Se, por minha causa… – Estava fazendo um esforço e eu bem via o que lhe custava. – Bem, eu prefiro passar sem o dinheiro.
– Deixe os meus problemas por minha conta – atalhei. – Você resolve os seus. Não se esqueça de estar no escritório terça-feira de manhã, esperando meu telefonema.
Henry suspirou, um suspiro de velho resignado, para quem a honestidade é coisa muito difícil de manter.
– Mano! – foi tudo o que ele disse.
Foi com alívio que saí de Scranton e peguei de novo a estrada gelada para Washington. Ao volante, pensei no jogo de pôquer marcado para aquela noite e apalpei o dólar de prata em meu bolso.
Fui detido por excesso de velocidade em Maryland, onde o gelo já derretera, e subornei o guarda com uma nota de cinqüenta dólares. O Sr. Ferris, fosse esse ou não o seu nome verdadeiro, estava espalhando o seu dinheiro por toda a economia norte-americana.
A tarde caía, quando cheguei a Washington. Os monumentos aos presidentes, generais, juízes, etc, todo o ambíguo panteão dórico-americano, estavam envoltos numa suave neblina crepuscular. Scranton parecia estar noutra zona climática, noutro país, numa civilização distante. As ruas estavam quase vazias, e as poucas pessoas que por elas passavam caminhavam lenta e calmamente. Jeremy Hale disse que Washington era melhor nos fins de semana, quando as máquinas do governo paravam. Na capital, de sexta-feira à tarde até segunda de manhã, era possível acreditar no valor e no decoro da democracia. Imaginei o que a mulher loura, cujo táxi eu tinha compartilhado, estaria fazendo naquele fim de semana.
Não havia nenhum recado para mim na portaria do hotel, e assim que entrei no meu quarto liguei para a casa de Hale. Uma criança atendeu, com voz pura e cristalina, e por um momento senti uma inveja inesperada por não ter um filho que atendesse para mim e me dissesse, com amor não complicado: "Papai, é para você".
– Como é? O jogo continua de pé? – perguntei a Hale.
– Que bom que você voltou – disse Hale. – Passo por aí às oito.
Eram só cinco horas e veio-me à cabeça ligar para o apartamento de Evelyn Coates e ver qual das duas estava em casa. Mas o que é que eu diria? "Escute, tenho duas horas livres." Eu não era esse tipo de homem, nunca seria. Pior para mim.
Fiz a barba e tomei um bom banho quente. Deitado na banheira, fiz uma lista de minhas bênçãos, que não eram pequenas.
– Um ninho de magafagafos, com cinco magafagafinhos – disse, em voz alta. Havia cinco dias e cinco noites que não gaguejava. De certa maneira, era como largar as muletas e sair andando, em Lourdes. Havia também o dinheiro no cofre, em Nova York. De vez em quando, eu pensava nele, nas pilhas de notas dentro da caixa-forte, carregadas de promessas infinitas. Os vinte e cinco mil dólares que eu ia dar a meu irmão eram um pequeno preço a pagar por me libertar do sentimento de culpa que sempre sentira em relação a Hank e que durante tantos anos jazera no meu subconsciente. E Evelyn Coates… "Velhinho", pensei, lembrando-me do corpo flácido caído no corredor, "você não morreu em vão."
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