Fiquei chocado quando o vi entrar no bar. Há cinco anos que não o via, e Henry era então um homem ereto, bem constituído, denotando autoconfiança. Agora, parecia que os cinco anos tinham dado cabo dele. Parecia diminuído, curvado. Perdera muito cabelo, e o que lhe restava era cinza-amarelado. Usava grossos óculos com armação de ouro, que lhe marcavam o alto do nariz. Sempre tivera belos olhos, de coloração bem definida como o resto da família, e boa visão, de modo que os óculos não lhe ficavam bem. Mesmo na penumbra do bar, Henry lembrava um animalzinho assustado, pronto a se meter num buraco ao primeiro sinal de perigo.
– Estou aqui, Hank – disse eu, levantando-me.
Apertamo-nos as mãos sem dizer palavra. Tinha certeza de que Henry sabia que mudara muito e que eu estava procurando esconder minha reação a esse fato.
– Você está com sorte – disse Henry. – Encontrei logo. – Meteu a mão no bolso, puxou um envelope amarelado e entregou-me. Tirei de seu interior a certidão. Lá estava, a minha identidade confirmada. Douglas Traynor Grimes, cidadão nascido nos Estados Unidos, sexo masculino, filho de Margaret Traynor Grimes.
Enquanto eu examinava o pedaço de papel envelhecido, Henry tirou o sobretudo e o dobrou sobre uma cadeira. O paletó tinha os punhos e os cotovelos gastos.
– O que você vai tomar, Hank? – perguntei, num tom de voz falsamente animado.
– Um old-fashioned. – Sua voz permanecera a mesma, quente e profunda, uma bem conservada relíquia de melhores dias.
– O mesmo para mim – disse eu ao garçom, de pé junto à mesa.
– Muito bem! – disse Henry. – A volta do filho pródigo. – Se eu fechasse os olhos, a voz continuaria sendo o meu irmão.
– Não é bem isso. Eu diria que estou fazendo uma escala para reabastecer.
– Não está mais voando?
– Já lhe escrevi dizendo isso.
– Foi a única vez em que me escreveu – retrucou Henry. – Não pense que estou me queixando. – E estendeu as mãos num gesto de paz. Reparei que suas mãos tremiam. "Meu Deus", pensei, "ele só tem quarenta anos!" – O mundo está cada vez mais difícil – continuou Henry. – O tempo passa, os irmãos seguem caminhos diferentes.
Quando nos trouxeram os drinques, brindamos à nossa saúde. Henry bebeu avidamente metade do copo de um só gole.
– Depois de um dia no escritório… – disse, reparando no meu olhar. – Os dias parecem intermináveis, naquele escritório.
– Posso imaginar – falei.
– Agora, conte-me as novidades – pediu Henry.
– Conte você – retruquei. – Madge, as crianças, etc, etc.
Henry mandou vir mais dois drinques, enquanto me falava de Madge e das crianças. Madge estava bem, um pouco cansada de tomar conta da casa sem empregada, além de fazer parte do comitê de pais de alunos e de dar aulas à noite num curso de estenografia, as três filhas estavam lindas, embora a mais velha, de catorze anos, fosse algo problemática, como quase todas as meninas dessa idade, hoje em dia, e precisasse de uma ajuda psiquiátrica. Tirou fotografias da carteira, a família junto de um lago, as mulheres bronzeadas, robustas e bem-dispostas, Henry metido num calção demasiado grande, pálido e com ar preocupado, como se estivesse pressentindo um desastre. As notícias sobre nosso irmão Bert não eram surpreendentes.
– É um conhecido homossexual, locutor de rádio em San Diego – disse Henry. – Nós devíamos ter previsto isso. Você nunca se deu conta?
– Não.
– Bem, hoje em dia isso não é tão mau assim, acho eu – disse Henry com um suspiro. – Mas na nossa própria família… Papai teria morrido de desgosto. Bert tem bom coração; no Natal sempre manda presentes para as meninas, lá da Califórnia, mas eu não saberia o que fazer se ele aparecesse por aqui.
Nossa irmã Clara, a caçula, estava casada, em Chicago, e tinha dois filhos, eu sabia?
– Sabia que ela tinha se casado, mas não que tinha filhos.
– Poucas vezes a vemos – disse Henry. – As famílias parecem desintegrar-se. Daqui a alguns anos, minhas filhas seguirão o seu caminho e eu e Madge ficaremos em casa, vendo televisão. – Riu amargamente. – Belos pensamentos! Mas há uma vantagem. Os desgraçados não vão poder pegar num filho meu e matá-lo numa dessas guerras. Que país, onde a gente dá graças a Deus por não ter um filho homem! – Abanou a cabeça, como se a conversa tivesse tomado rumos indesejáveis. – Não acha que é hora de pedir outro drinque?
Eu ainda tinha o primeiro copo quase cheio, mas ele mandou vir mais dois drinques. Dali a pouco, Henry estaria bêbado. Talvez isso explicasse tudo, embora eu soubesse que nunca explicava tudo.
– Clara está muito bem – continuou Henry. – Pelo menos, é o que ela nos diz. Quando escreve. O marido é um dos diretores de uma firma de corretores da Bolsa, lá em Chicago. Tem até um iate no lago. Imagine só… uma Grimes com um iate. Bem, chega de falar de nós. E você?
– Ao jantar – repliquei. Era evidente que Henry precisava comer qualquer coisa… e depressa.
No restaurante do hotel, Henry mandou vir um grande jantar.
– Que tal uma garrafa de vinho? – perguntou, sorrindo muito, como se acabasse de ter uma idéia brilhante e original.
– Se você quiser – falei. Sabia que Henry ficaria muito pior com o vinho, mas desde criança me habituara a obedecer às suas ordens, e notei que o hábito persistia.
Henry quase não comeu, mas em compensação bebeu muito. De vez em quando ficava sóbrio, olhava fixo para mim e me falava quase com severidade, como se de repente se lembrasse da sua posição de chefe da família.
– Agora, diga-me, rapaz – falou, durante uma dessas ocasiões. – Por onde você tem andado, o que tem feito, o que o traz aqui? Imagino que precise de ajuda. Não nado em dinheiro mas acho que posso lhe…
– Não é nada disso, Hank – falei depressa. – O problema não é dinheiro.
– Isso é o que você pensa, irmão – riu Henry, amargamente. – Isso é o que você pensa.
– Escute o que lhe vou falar, Hank – disse eu, inclinando-me para a frente, falando em voz baixa, procurando atrair-lhe a atenção. – Vou-me embora.
– Embora? Para onde? – perguntou Henry. – Você tem passado toda a vida indo embora.
– Desta vez é diferente. Talvez vá embora por muito tempo. Talvez vá primeiro à Europa.
– Arrumou emprego na Europa?
– Não é bem isso.
– Não tem emprego?
– Por favor, Hank, não faça perguntas – disse eu. – Vou-me embora, mais nada. Não sei quando poderei voltar a vê-lo. Talvez nunca. Quis voltar às raízes antes de ir embora. E quero agradecer-lhe por tudo o que fez por mim. Quero que você saiba que lhe estou muito grato. Antes, eu era um garoto e achava que a gratidão era coisa de mulheres ou degradante, pouco britânica, sei lá que outra idiotice do gênero.
– Ora, Doug! – disse Henry. – Esqueça isso, está bem?
– Não, nunca vou esquecer. Outra coisa. Papai morreu quando eu tinha treze anos e…
– Ele deixou um bom seguro – completou Henry. – Sim, senhor, um bom seguro. A gente nunca poderia esperar… um homem que trabalhava como capataz numa loja de máquinas. Um homem que trabalhava com as mãos. Sempre pensou na família. Que seria de nós, hoje, se ele não tivesse deixado aquele seguro…?
– Não estou falando nisso.
– Pois deve falar. É bom falar com um contador, quando o assunto é morte e seguro de vida.
– Você tem alguma lembrança dele? Era disso que eu queria falar. Eu era um garotinho, pouco me lembro dele; papai era uma pessoa que vinha almoçar e jantar, pouco mais do que isso. Ainda sonho com ele, mas não consigo lembrar-me do seu rosto. Você, porém, já tinha vinte anos…
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