Havíamos dito tudo quanto sabíamos. Ele estava a par de tudo que sabíamos.
Em algum ponto de nosso futuro simultâneo, Leslie fez o que Pye nos indicara. O momento da despedida havia chegado. Fechando os olhos, imaginando o mundo dos desenhos sob a água, ela empurrou o manete do Seahawk para a frente.
O céu noturno, os caças e toda a base estremeceram à nossa volta, como também o próprio tenente, que dizia “Esperem…!”.
E desapareceram.
Meu Deus, pensei. Ante a ordem de algum presidente, mulheres, crianças e homens, amantes e padeiros, atrizes e músicos, comediantes, médicos e bibliotecários… o tenente mataria todos, sem misericórdia.
Gatinhos e pássaros, árvores, flores e fontes, livros, museus e obras de arte… ele calcinará sua própria alma irmã, e nada que possamos argumentar é capaz de detê-lo. Ele sou eu, mas não posso detê-lo!
Leslie leu meu pensamento, segurou-me a mão.
— Richard, querido, escute. Talvez não pudemos detê-lo. Mas talvez consigamos.
Leslie manteve o manete à frente, e o Martin ganhou suavemente o céu. A cem pés de altitude acima dos desenhos, ela colocou o avião em velocidade de cruzeiro, estabilizando-o.
Embora voássemos com um tempo esplêndido, sobre águas reluzentes, o desespero tomava conta da cabine — o assombro ante o fato de seres humanos inteligentes poderem ser arrastados a uma guerra suicida. Era como se a idéia fosse nova para nós, como se a amarga resignação tivesse sido despedaçada por um exame mais detido da sandice que aquilo representava. Voamos durante muito tempo em silêncio.
— Pye — perguntei por fim —, entre todos os pontos onde poderíamos pousar num desenho que se estende até o infinito, por que escolhemos justamente esses passados? Por que Leslie ao piano e Richard junto de seu caça?
— Não adivinham? — replicou, devolvendo a pergunta para nós.
Refleti sobre os dois episódios. O que tinham em comum?
— Ambos eram jovens e estavam perdidos?
— Perspectivas? — sugeriu Leslie. — Ambos haviam chegado ao momento em que precisavam lembrar do poder das escolhas…
Pye assentiu.
— Exatamente.
— E a finalidade desta viagem é aprendermos perspectiva? — perguntei.
— Não, não havia finalidade alguma — respondeu ela. — Vocês caíram aqui por coincidência.
— Ah, Pye! — exclamei.
— Não acredita em coincidência? Então precisa acreditar que você foi o responsável, que navegou para este lugar com a precisão de um fóton, saindo do centro de seu sol até a ponta de uma agulha.
— Bem, é evidente que eu não estava navegando.. — retruquei.
As palavras ganharam sentido, e me virei para Leslie.
Havia entre nós uma brincadeira particular, a de que Leslie, que no chão não possui nenhum senso de direção, sabe melhor do que eu para onde ir quando estamos no ar.
— A navegadora sou eu — avisou ela, com um sorriso.
— Ela acha que está brincando — disse Pye. — Mas sem ela você não teria conseguido, Richard. Sabe disso?
— Sou eu quem sente fascínio por percepção extra-sensorial, por viagens para fora do corpo e experiências de semimorte — retruquei. — Leio os livros, estudo página por página até altas horas.
Leslie raramente lê os livros, mas lê mentes, vê nosso futuro…
— O que é isso, Richard! Sou uma cética, e sabe disso! Sempre fui cética com relação à vida extraterrena. — Sempre? — perguntou Pye.
— Bem… já aprendi que às vezes ele tem razão — respondeu Leslie. — Ele vem com uma idéia esquisita qualquer, e na semana seguinte ou no ano seguinte a ciência descobre a mesma coisa. Por isso, aprendi a encarar essas idéias dele, por mais loucas que pareçam, com uma certa dose de respeito. E eu gostaria das voltas e reviravoltas estranhas da mente dele, mesmo que a ciência nunca as corroborasse, pois são idéias fascinantes. Mas eu é que sempre fui a prática, a que tem os pés na terra.
— Sempre? — perguntei.
— Ah… Isso não vem ao caso — retrucou, lendo meu pensamento. — Eu era uma garotinha. E não gostava daquele tipo de coisa, tanto que parei.
— Leslie está dizendo que era dotada de uma intuição tão intensa que ficava assustada — comentou Pye. — Por isso, bloqueou seu dom e faz o quanto pode para mantê-lo bloqueado. Os céticos práticos não gostam de se assustar com poderes estranhos.
— Minha querida navegadora — falei. — Não é de espantar!
Não foi você quem quis voltar quando Los Angeles desapareceu, fui eu.
Não sou eu quem é capaz de empurrar o manete de um hidravião que não enxergo, é você!
— Não seja bobo — protestou ela. — Eu jamais estaria pilotando um hidravião, jamais estaria pilotando avião algum se não fosse você! A viagem a Los Angeles foi idéia sua…
Leslie tinha razão. Fora eu quem a seduzira, levando-a a deixar a casa e as flores, com aquele convite de Spring Hill. Mas idéias são como a vida para nós dois — mudança e desenvolvimento, tensão e relaxamento, crise e alegria. Do céu caem perguntas fascinantes, despertando respostas, a nos incitar a decifrar isso, exprimir aquilo, ir ali, fazer isso, ajudar acolá. Nenhum de nós dois é capaz de resistir a idéias.
Imediatamente fiquei a imaginar se poderíamos descobrir respostas, explorar, naquele mundo estranho, outras coisas além de nossas vidas anteriores.
— Pye, de onde vêm as idéias? — perguntei, testando-a.
— Dez graus à esquerda — disse ela, — Como? — espantei-me. — Não, idéias. Elas simplesmente…
aparecem nas horas mais estranhas. Por quê?
— A resposta a qualquer pergunta que possa fazer se encontra no desenho. Faça aquela inclinação de vinte graus para a esquerda, agora, e pouse.
Eu sentia em relação à nossa amiga avançada o mesmo que antes havia sentido em relação aos instrutores de vôo — enquanto estivessem a meu lado no avião, eu não tinha medo de tentar qualquer pirueta que pedissem.
— Certo, querida? — perguntei à minha mulher. — Está pronta para mais?
Leslie concordou, ansiosa por mais aventuras.
— Que idéia maravilhosa essa, explorar idéias!
Virei o hidravião como Pye pedira, conferindo detalhes: rodas levantadas, flaps baixados. Reduzi a velocidade.
— Dois graus à direita, alinhe com aquela faixa amarela brilhante debaixo da água… Diminua a velocidade só um pouquinho — disse nossa guia. — Isso! Desligue o motor. Perfeito!
O lugar onde paramos parecia um serão no inferno. Labaredas crepitavam e rugiam em fornalhas, monstruosos caldeirões, com uma substância derretida, suspensos por pontes rolantes, movimentavam-se sobre uma congestionada planície de aço de dez quilômetros quadrados.
— Meu Deus… — exclamei.
Uma empilhadeira elétrica do tamanho de um carrinho de golfe deteve-se no corredor mais próximo de nós, e dela desceu uma jovem delicada, de macacão e capacete, para nos levar a nosso destino.
Poderia ter-nos cumprimentado, mas qualquer palavra se perderia na balbúrdia de ferro e fogo. Um caldeirão inclinou-se, e centelhas azuis jorraram dos moldes de lingotes atrás dela, transformando-a numa silhueta.
Ela não tinha mais que a altura de meu peito.
— Que lugar, hem? — comentou, a título de apresentação, gritando para se fazer ouvir, ao mesmo tempo em que nos entregava capacetes e óculos escuros. Falava como se tivesse orgulho daquele lugar. — É provável que não precisem disso, mas se a gerência nos descobrir sem eles… — Riu e passou o dedo, maliciosa, pelo pescoço, fazendo um sinal para que a seguíssemos.
— Mas não podemos nos comunicar… — Eu comecei. Ela sacudiu a cabeça.
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