“E os Estados Unidos não se importarão, a Força Aérea não se importará e o general que deu as ordens também não se importará. Só você há de se importar, eternamente, com o fato de haver assassinado as pessoas que vai assassinar. Você, elas e as famílias delas. Grande realização Richard…
Virei-me e me afastei, deixando-o junto à asa do caça. Serão as vidas a tal ponto determinadas pela doutrinação, pensei, que não há possibilidade de mudança? Porventura eu mudaria, eu daria ouvidos a mim mesmo se fosse ele?
Ele não levantou a voz, nem gritou. Falou como se não tivesse notado que eu me afastara.
— O que quer dizer quando afirma que sou responsável?
Que sensação esquisita! Eu estava conversando comigo mesmo, mas aquela mente não era mais minha, não tinha como mudá-la. Só podemos transformar nossas vidas na eternidade in-finitesimal que é o nosso agora. Se nos afastamos um momento daquele agora, já se trata da decisão de outra pessoa!
Esforcei-me por ouvir o que ele dizia.
— Quantas pessoas vou matar?
Retrocedi para ir falar com ele.
— Em 1962, você será mandado à Europa com a 478ª Esquadrilha Tática de Caças. O episódio será chamado de “a crise de Berlim”. Vai decorar as rotas para dois alvos, um primário e outro secundário. Há uma possibilidade de que, daqui a cinco anos, você lance uma bomba de cinqüenta megatons sobre a cidade de Kiev.
Fiquei a observá-lo.
— A cidade é conhecida principalmente por sua indústria editorial e cinematográfica, mas o importante para você serão as oficinas ferroviárias no centro da cidade e as fábricas de máquinas-ferramentas nas cercanias.
— Quantas pessoas…?
— Haverá em Kiev, naquele inverno, 866.000 pessoas, e se você obedecer às ordens, os poucos milhares que sobreviverem a seu ataque desejarão estar mortos.
— Oitocentos e sessenta e seis mil pessoas?
— Pavios curtos, o orgulho nacional em jogo, a segurança do mundo livre. Um ultimato após o outro…
— Eu lançarei… eu lancei a bomba? — Estava muito tenso, ouvindo seu futuro.
Abri a boca para dizer que não, os soviéticos recuaram, mas fiquei tonto de raiva. Algum ego alternativo, de um holocausto passado e diferente, agarrou-me pelo pescoço e falou com ferocidade. Era uma voz cortante, rouca, desesperada em sua tentativa de convencê-lo.
— Claro que lançou! Não contestei a ordem, tal como você não contestou! Pensei: se estamos em guerra, é o presidente que dispõe de todos os fatos, é ele quem toma as decisões, ele é o responsável. Nem por um instante pensei, até decolar, que o presidente não pode ser responsável pelo lançamento da bomba porque o presidente não sabe pilotar um avião! — Esforcei-me para me controlar, perdido. — O presidente não distingue uma chave de lançamento de míssil de um pedal de leme, ele não pode ligar o motor, não pode taxiar até a pista…
Sem mim ele seria um idiota inofensivo em Washington, e o mundo permaneceria o mesmo sem a guerra nuclear que ele inventou. Mas, Richard, esse idiota tinha a mim! Como ele não sabia matar um milhão de pessoas, fiz isso para ele! A arma dele não era a bomba, era eu! Na época não juntei os fatos: pouquíssimas pessoas no mundo sabiam fazer essas coisas, e sem nós não seria possível haver guerra alguma!
Destruí Kiev, pode acreditar nisso? Incinerei um milhão de pessoas porque um maluco qualquer… me mandou fazer isso!
O tenente estava boquiaberto, a me olhar.
— Por acaso a Força Aérea ensinou-lhe ética? — sibilei. — Você algum dia teve um curso chamado Responsabilidade dos pilotos de caças? Nunca teve, nem terá. Tudo o que a Força Aérea lhe disse é que obedecesse a ordens, que fizesse o que lhe era ordenado. A Força Aérea não diz que você deve viver com a sua consciência. Você obedece à ordem de acabar com Kiev, e seis horas depois um sujeito de quem você seria amigo, um piloto chamado Pavel Tchemov, obedece às ordens que ele recebeu e põe fim à existência de Los Angeles. Todo mundo morre. Se você mata a si mesmo quando assassina os russos, por aue matá-los, então!
— Mas eu… eu prometi obedecer a ordens!
No mesmo instante, o louco largou meu pescoço, desesperado, e desapareceu. Tentei raciocinar de novo com o tenente.
— O que hão de fazer com você se não obedecer às ordens?
Dirão que não é um profissional? Submeterão você à corte marcial?
Vão matá-lo? Isso seria pior do que o que fará à cidade de Kiev?
Durante um longo momento, ele me olhou em silêncio.
— Se você pudesse me dizer qualquer coisa — falou, por fim —, e eu prometesse lembrar-me do que falou, o que me diria? Que está envergonhado de mim?
Dei um murro na asa do avião.
— Ah, garoto, seria muito mais fácil para mim se você simplesmente teimasse, insistisse em que está com a razão ao obedecer a ordens. Por que precisa ser tão cordato?
— Porque sou o senhor!
Encostei-me no metal frio e enterrei o rosto nas mãos. Senti um toque no ombro, e levantando o olhar vi o brilho de cabelos dourados ao luar.
— Apresenta-me? — disse Leslie. As sombras revelavam uma feiticeira na noite.
Empertiguei-me logo, captando apenas um vislumbre do que ela pretendia.
— Este é o tenente Bach. Quero apresentá-lo a Leslie Parrish.
Sua companheira, sua futura mulher, aquela por quem esteve procurando, aquela que você encontrará ao fim de muitas aventuras, no começo da serenidade feliz.
— Como vai? — cumprimentou ela.
— Eu… ah… Como vai? — respondeu ele, hesitante. — Você disse… minha mulher?
— No tempo oportuno — respondeu Leslie.
— Tem certeza de que se refere a mim?
— Existe, neste momento, uma Leslie jovem — disse ela — que está começando a carreira, imaginando quem será você, onde está, quando vão se encontrar…
O rapaz a encarava com assombro. Durante anos sonhara com ela, a amara, soubera que em algum lugar escondido do mundo ela estava à sua espera.
— Não posso acreditar nisso. Você veio de meu futuro?
— Um de seus futuros — retrucou Leslie.
— Mas como podemos nos encontrar, onde você está agora?
— Não poderemos nos encontrar enquanto você estiver na Força Aérea! Num determinado futuro, jamais nos encontraremos.
— Mas se somos companheiros um do outro, devemos nos encontrar! Os companheiros nascem para passar a vida juntos!
Leslie recuou um pouco, afastando-se dele.
— Talvez não.
Nunca esteve tão linda como esta noite, pensei. E como ele anseia por saltar no tempo para encontrá-la!
— Jamais pensei que alguma coisa pudesse… Qual é o poder capaz de afastar duas pessoas que nasceram uma para a outra? — perguntou ele.
Era minha mulher quem falava? Ou seria uma Leslie alternativa, vinda de seu próprio futuro diferente?
— Meu querido Richard — disse ela —, naquele futuro em que você bombardeia Kiev, e seu amigo russo, o piloto, bombardeia Los Angeles? O estúdio da Twentieth Century-Fox, onde estarei trabalhando, fica a mais ou menos um quilômetro e meio do ponto zero. Estarei morta um segundo após a queda da primeira bomba. — Virou-se para mim, com um darão de terror na expressão, sentindo que o objetivo de nossas vidas estava perdido. Há alguns futuros, clamava aquela outra Leslie… Nem sempre as pessoas que nasceram uma para a outra se encontram!
Coloquei-me a seu lado, enlaçando-a, amparando-a enquanto passava o terror.
— Não podemos modificar isso — avisei.
Ela concordou, já sem angústia, entendendo a situação antes de mim.
— Tem razão — disse com tristeza, e virou o rosto para o tenente. — A escolha não é nossa. É sua.
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