Fiquei surpreso ante essas palavras. Leslie nunca me contara. Só agora eu percebia o que ela poderia ter sido, o que ela havia posto de lado ao saltar da música para o gelo de sua carreira em Hollywood.
A moça parecia inteiramente confusa.
— Bem, isso aconteceu com você, mas aconteceria comigo? O que devo fazer?
— Só há uma pessoa no mundo capaz de responder essa pergunta: você mesma. Descubra o que realmente deseja e faça isso.
Não passe vinte anos de sua existência vivendo passivamente, quando pode decidir agora mesmo seguir o rumo que deseja. O que você realmente quer?
A moça não titubeou.
— Quero aprender. Quero ser a melhor no que faço. Quero dar ao mundo alguma coisa bela!
— Você há de fazer isso. Que mais deseja?
— Quero ser feliz. Não desejo ser pobre.
— Sei. O que mais? A moça animou-se.
— Quero acreditar que há uma razão para viver, uma coisa que faça sentido, um princípio que me ajude a suportar os momentos difíceis e também os bons. Não se trata de religião, porque já tentei, tentei mesmo, e em vez de respostas, tudo que escuto é “Tenha fé, minha filha.”
Leslie franziu o cenho, recordando-se.
— E, além disso — continuou a moça, subitamente acanhada —, quero acreditar que há no mundo uma outra pessoa tão solitária quanto eu. Quero acreditar que vamos nos encontrar, e que… vamos amar um ao outro, e que nunca mais estaremos sozinhos!
— Escute — falou minha mulher, olhando-a nos olhos com muita intensidade. — Tudo o que você disse, tudo aquilo em que quer acreditar, já é verdade. Você poderá não encontrar alguma coisa durante algum tempo, e até poderá demorar mais para achar outras coisas, mas isso não impede que sejam verdadeiras neste exato instante!
— Até uma pessoa para amar? Haverá mesmo alguém para mim? Ele também é verdade?
— Ele se chama Richard. Quer conhecê-lo?
— Conhecê-lo agora? — espantou-se.
Leslie estendeu a mão da moça para mim. Saí de trás dela, satisfeito com o fato de aquele aspecto de uma pessoa tão querida desejar me conhecer.
Ela me olhou, aturdida.
— Olá — saudei-a, um pouco perturbado também. Como era estranho ver aquele rosto, tão diferente do da mulher que eu amava, e ao mesmo tempo tão igual!
— Você parece muito… assim… muito adulto para mim. — Ela achara, por fim, uma maneira delicada de dizer velho.
— Na época em que me conhecer, vai gostar de homens mais velhos — respondi.
— Não amo homens mais velhos! — disse minha mulher, passando o braço em volta de minha cintura. — Eu amo este homem mais velho…
A moça olhou-nos, assim abraçados.
— Não sei se está direito perguntar, mas vocês são realmente felizes juntos? — Por seu tom, percebia-se que ela achava difícil acreditar nisso.
— Mais felizes do que você consegue imaginar — respondi — Quando vou conhecê-lo? Onde? No conservatório? Deveria eu dizer-lhe a verdade? Que isso levaria mais vinte anos, um casamento desfeito, outros homens? Que antes de nos conhecermos, aquela jovem, ao lado de seu velho piano, teria de viver tudo quanto já vivera e mais a metade? Olhei para minha mulher.
— Ainda vai levar bastante tempo — disse ela, amável. — Ah.
Menina valente, pensei. Ainda vai levar bastante tempo, devia ter feito com que ela se sentisse mais solitária que nunca. A moça voltou-se para mim.
— E o que você resolveu ser? — perguntou. — Também é pianista?
— Não. Sou aviador…
A moça olhou para Leslie, pesarosa.
— …mas estou aprendendo a tocar flauta.
Era visível que flautistas amadores não a impressionavam. Ela deixou a questão de lado, resolvida a procurar meu lado mais emocionante, e aproximou-se de mim.
— O que pode me ensinar? O que é que você sabe?
— Sei que todos nós estamos na escola. Alguns dos cursos obrigatórios são: idade, aparência, relações com outras pessoas, alimentação e moradia — respondi com segundas intenções. Ela sorriu, como que culpada, percebendo que eu tomara conhecimento de sua vida tão pobre. — Sabe o que sei mais?
— O quê?
— Nem discussões, nem argumentos, nem fatos modificam seu modo de pensar. Para nós é fácil resolver seus problemas, todo problema é simples depois de o ter solucionado. Mas nem mesmo seu futuro ser, que se materializa diante de você e lhe diz, palavra por palavra, o que você há de fazer nos próximos trinta anos, há de alterar sua maneira de pensar. A única coisa capaz de alterá-la é seu próprio entendimento das coisas, individual, pessoal e exclusivo!
Os olhos da moça brilharam.
— Quer que eu aprenda isso com você? — Riu. — Escutei isso a vida inteira. Toda minha família me acha obstinada e esquisita.
Achariam péssimo ouvir alguém me incentivar.
— Por que acha que viemos vê-la? — perguntou Leslie.
— Por que estão com medo que eu me mate? — perguntou a moça. — Porque gostariam que algum eu futuro de vocês os tivesse visitado nessa idade para dizer “Não se preocupem, vocês vão sobreviver”. Não é isso? Leslie concordou.
— Exatamente.
— Mas, em vez disso, sou eu quem lhes diz: Não se preocupem — continuou a moça. — Prometo sobreviver. Mais que isso, prometo que ficarão felizes por eu ter vivido, prometo que sentirão orgulho de mim!
— Tenho orgulho de você! — disse Leslie. — Nós dois temos.
Minha vida esteve em suas mãos, e você não me deixou morrer, não desistiu quando tudo ao redor era desespero. Talvez não tenhamos vindo para lhe ensinar coisa alguma, talvez tenhamos vindo só para lhe agradecer por ter aberto o caminho. Por possibilitar a Richard e a mim encontrarmos um ao outro e sermos felizes.Talvez tenhamos vindo para lhe dizer que a amamos.
O mundo começou a tremer à nossa volta. O cenário cinzento ficou borrado, estávamos sendo arrastados.
Ela pressentiu que íamos embora, afastou as lágrimas dos olhos.
— Vou revê-los?
— Esperamos que sim — respondeu Leslie, e agora era ela quem soluçava.
— Obrigada por virem! — gritou a moça. — Obrigada!
Devemos ter desaparecido para ela, pois em meio à névoa nós a vimos encostar-se ao velho piano, de cabeça baixa. Depois sentou-se na cadeira e os dedos começaram a mover-se sobre as teclas.
A sala tosca desapareceu em meio ao espadanar da água e do ronco do motor.
Pye largou o manete, recostou-se no banco de trás e ficou a nos observar, toda solidariedade — Ela teve uma vida tão difícil! — lamentou Leslie, enxugando os olhos. — Era tão solitária! É justo que recebamos a recompensa da coragem e do esforço dela?
— Lembre-se de que foi ela quem escolheu aquela vida — retrucou Pye. — E escolheu as recompensas, também.
— Que quer dizer? — indagou Leslie.
— Ela não faz parte de você agora?
Claro, pensei. O prazer que a música lhe proporcionava, sua personalidade obstinada, até mesmo seu corpo, trabalhado e modelado por anos de decisões… Por acaso tudo isso não estava ali a nosso lado, naquele exato momento?
— Acho que sim — respondeu Leslie. — Mas fico pensando o que terá acontecido a ela…
— Aconteceu a ela tudo — disse Pye. — Ela ficou com a música e não ficou, viajou para Nova York e não viajou, é uma famosa concertista, matou-se, é professora de matemática, é uma estrela de cinema, é uma ativista política, é embaixadora na Polônia. A cada reviravolta da vida de uma pessoa, a cada vez que ela toma uma decisão, torna-se geradora de todas as suas pessoas alternativas que se seguem.
Você é uma das filhas dela… A única filha dela na sua vida, Leslie, no mundo que você conhece.
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