Estabilizei o hidravião a algumas centenas de pés acima do nível do mar, e puxei o manete para a velocidade de cruzeiro. Não havia necessidade de uma altitude maior quando o mundo inteiro era uma pista de pouso.
Lá embaixo, os desenhos passavam, velozes, trilhas e cores intermináveis sob a água.
— Complicado, não? — perguntei.
— É como uma tapeçaria — disse Pye. — Fio por fio, é simples.
Mas tente tecê-la a metros… As coisas se emaranham.
— Sente falta das pessoas que já foi? — perguntei à nossa guia.
— Sente falta de nós?
Pye sorriu.
— Não vivo no espaço-tempo. Estou sempre com vocês. Como sentir falta de vocês se nunca estamos afastados?
— Mas, Pye, você tem um corpo — insisti. — Pode não ser exatamente igual ao nosso, mas tem uma determinada dimensão, um certo aspecto…
— Não, não tenho corpo. Vocês percebem minha presença, e acham melhor percebê-la como um corpo. Poderiam ter escolhido inúmeras outras percepções. Todas são úteis, mas nenhuma verdadeira.
Leslie virou-se para olhá-la.
— Por exemplo, que percepção superior poderíamos ter escolhido?
Virei-me também e vi uma estrela branco-azulada de pura luz, um arco voltaico na cabine. O mundo tornou-se incandescente.
Viramos o rosto com um arranco. Fechei os olhos com força, mas aquele clarão persistiu, cauterizante. A seguir, desvaneceu-se. Pye tocou nossos ombros e pudemos vê-la de novo.
— Desculpe — falou. — Como fui descuidada! Vocês não podem ver-me como eu sou, não podem tocar-me como sou. Sequer podemos falar com palavras e dizer a verdade. A linguagem não consegue decrever… Para mim dizer eu e não pretender dizer vocês-nós-todos-espírito-Um é o mesmo que falar mentiras, mas não utilizar palavras equivale a perder essa oportunidade de conversarmos. É melhor mentiras bem-intencionadas do que o silêncio, ou não mencionar coisa alguma…
Meus olhos ainda estavam ofuscados pela luz.
— Meu Deus, Pye, quando vamos aprender a fazer isso?
— Vocês já são isso — riu ela. — O que tiveram de aprender no espaço-tempo foi manter suas luzes apagadas!
Fiquei mais perplexo do que nunca, e um tanto nervoso por depender daquela criatura. Por mais simpática que se mostrasse, ela controlava nossas vidas.
— Pye, quando quisermos voltar dessas pessoas alternativas, essas que visitamos, como poderemos fazer o hidravião se mover para nos levar embora? Como será possível estarmos em dois lugares ao mesmo tempo?
— Vocês não estão em dois lugares ao mesmo tempo, estão em toda parte ao mesmo tempo. Não precisam do hidravião ou dos desenhos. O que ocorre é que vocês lhes dão forma através da imaginação. E seu mundo adquire a forma que sua imaginação lhe dá.
— Imagino levar minha mão ao manete? Como posso levar a mão ao manete se estou inteiramente em outro mundo? Se você não o tivesse empurrado para a frente, estaríamos presos em 1952!
— Não. É você que governa seus mundos, não são eles quem o governam. Gostaria de tentar outra vez?
Leslie pôs a mão em meu joelho e assumiu os controles.
— Experimente, querido. Feche os olhos, diga-me para onde devo voar.
Recostei-me no assento e fechei os olhos.
— Siga em frente — comandei, sentindo-me um pouco bobo.
Poderia perfeitamente ter dito “Suba constantemente”.
O motor embalou-nos durante algum tempo. Então, embora eu nada visse, surgiu um súbito propósito na escuridão.
— Vire à direita — falei. — Bem para a direita.
Senti o avião inclinar-se para o lado. A seguir, vi fios luminosos, um fino feixe de névoa que se estendia verticalmente, atravessado por um outro, horizontal. Estávamos à esquerda do ponto em que se cruzavam, aproximando-nos do centro.
— Certo. Continue assim.
A cruz começou a descer, pôs-se a entrar em foco.
— Desça um pouco. Mais à esquerda…
Agora a imagem em minha mente era clara como os ponteiros em uma aproximação por instrumentos, e tão precisos quanto eles.
Como nossa imaginação parece real!
— Desça um pouco. Estamos em trajetória de aproximação, bem rumo ao alvo. Um pouco para a esquerda. Devemos estar quase pousando, não é?
— Faltam alguns pés — respondeu Leslie.
— Certo. Agora. Desligue o motor. — Ouvi as ondas roçarem a quilha de nosso barco voador. Ao abrir os olhos, vi o mundo desaparecer, envolto em borrifos. Nesse instante tudo se transformou num negrume móvel, baças formas prateadas que estremeciam na escuridão, e por fim paramos. Ar livre, noite.
Achávamo-nos num vasto campo de concreto… uma base aérea!
Luzes azuis de rolagem nas extremidades, pistas a distância, caças a jato parados na área de estacionamento, formas prateadas ao luar.
— Onde estamos? — sussurrou Leslie.
Os caças, fileiras após fileiras, eram Sabrejets norte-americanos F-86F. Imediatamente percebi onde estávamos.
— Esta é a base aérea Williams, no Arizona. Escola de com bate aéreo. Estamos em 1957. Eu costumava vir para aqui de noite, só para ficar perto dos aviões.
— Por que estamos sussurrando? — perguntou ela. Naquele instante, um jipe da polícia da Aeronáutica fez uma curva ao final de uma fileira de aparelhos, patrulhando, e veio em nossa direção.
Diminuiu a marcha, contornou um caça estacionado à nossa direita e parou.
Não podíamos ver o policial, mas escutávamos sua voz.
— Com licença, senhor. Quer fazer o favor de mostrar sua identificação?
Alguém respondeu em voz baixa, umas poucas sílabas que não conseguimos entender.
— É comigo que ele está falando — falei a Leslie. — Eu me lembro disso…
— Ótimo, senhor. Estamos apenas verificando. Está tudo certo.
Logo depois o jipe deu marcha à ré para se afastar do avião, engatou uma primeira, roncou e deu a volta do outro lado do caça. Se o motorista nos viu, não deu sinal disso. Antes que pudéssemos nos afastar, os faróis haviam-se transformado em sóis fulgentes a investir em nossa direção.
— CUIDADO! — gritei, mas era tarde demais. Leslie gritou.
O jipe atingiu-nos de frente, atropelou-nos sem um instante de hesitação e desapareceu ao longe, ainda acelerando.
— Ah — falei. — Esqueci-me. Desculpe!
— A gente demora a se acostumar! — respondeu Leslie, sem fôlego.
Apareceu um vulto no nariz do avião.
— Quem está aí? Você está bem?
O homem usava um traje de vôo de náilon escuro. Ele próprio parecia um fantasma ao luar. Asas de piloto bordadas no dólmã, distintivo de segundo-tenente.
— Vá você lá — murmurou Leslie. — Vou ficar por aqui.
Balancei a cabeça e abracei-a.
— Estou bem — respondi. — Posso me aproximar, senhor? — Sorri, achando graça por falar como um cadete depois de tantos anos.
— Quem é?
Para que ele precisava fazer aquele tipo de pergunta?
— Tenente, sou o segundo-tenente Bach, Richard D., A-0 Três-Zero-Oito-Zero-Sete-Sete-Quatro!
— É você, Mize? — Ele riu. — O que está fazendo aqui, que nem um bobalhão?
Phil Mizenhalter, pensei. Grande sujeito! Daqui a dez anos estará morto, abatido com seu F-105 no Vietnã.
— Não sou Mize — respondi. — Sou Richard Bach, sou você vindo do futuro, trinta anos a contar desta noite.
Ele perscrutou a escuridão.
— Você é quem?
Se vamos fazer isso mais vezes, pensei, é melhor nos acostumarmos a essa pergunta.
— Sou você, tenente. Sou você com um pouco mais de experiência. Sou aquele que cometeu todos os erros que você cometeu, e que não se sabe como, sobreviveu.
Ele se aproximou um pouco, inspecionando-me na escuridão, ainda achando que se tratava de uma brincadeira.
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