— Mas que tens? — perguntou-me baralhando as cartas. — Tu jogas francamente mal.
Larguei as cartas e disse-lhe:
— Não me atormentes assim, Jaime! Não tenho disposição para jogar.
— Porquê?
— Não sei.
Levantei-me e dei alguns passos pela sala, torcendo as mãos. Depois perguntei-lhe:
— Vamos para o quarto? Queres?
— Vamos.
Passamos para o vestíbulo e ali no escuro agarrou-me pela cintura e beijou-me no pescoço. Então, talvez pela primeira vez na vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se aturdir e de não pensar, nem mais agradável nem mais importante que qualquer outro meio. Segurei-lhe a cabeça entre as mãos e beijei-o furiosamente. Foi assim que entrámos no quarto. Estava mergulhado na escuridão, mas eu nem dei por isso. Uma sombra vermelha empalidecia-me os olhos; cada um dos nossos gestos tinha o brilho de uma língua de fogo, brusca e rápida, do incêndio que nos devorava.
De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da lâmpada reflectindo-se sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas, talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapei-me com as duas mãos. Jaime olhou e disse-me:
— Bem depressa a tua barriga inchará… inchará cada dia mais… um dia a dor obrigar-te-á a abrir essas pernas que tu fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrá-la-ão e depois irão pô-la nos teus braços… ficarás contente e haverá mais um novo ser neste mundo… Esperemos que ele não venha a falar vomo Astárito!
— Como?
— “Maldito seja o dia em que nasci!”
— Astárito é um desgraçado — respondi —, mas eu tenho a convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.
Depois enrolei-me na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não conhecia gritar-me com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, sentei-me dentro da roupa e perguntei:
— Que diz que irá fazer o Sonzogne?
Olhou-me e respondeu:
— Como poderei saber?
— Eu conheço-o — disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angústia que me oprimia. — Não quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que julgas tu?
— É muito possível.
— Pensas que o vai matar?
— Se o fizesse não me admiraria.
— E preciso avisá-lo! — gritei levantando-me e vestindo-me. — Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei nisto mais cedo?
Vestia-me a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disse-lhe:
— Vou a casa de Astárito… A esta hora está em casa… Espera-me aqui.
— Vou contigo.
Não insisti. No fundo agradava-me que me acompanhasse, porque estava tão agitada que receava sentir-me mal. Enfiei o casaco e declarei:
— É preciso apanhar um táxi.
Jaime vestiu o sobretudo e saímos.
Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvando-me, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:
— E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.
Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:
— É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto… Fosse como fosse era meu dever vir.
Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais. Então Jaime disse-me com uma voz tranquila:
— Deve ter acontecido alguma coisa… olha.
Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordão de gente alinhava-se no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito. Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.
— Que há aqui? O que aconteceu? — perguntei, sem fôlego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astárito.
— Não se percebe bem — respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a bicicleta pelo guiador —, foi alguém que se atirou para a caixa da escada… ou atiraram-no. A polícia subiu ao telhado para investigar o caso.
Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a gritar imperiosamente.
— Para trás! Vão-se embora!
Senti-me projectada com violência para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharam-se logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:
— Jaime, vamos!
Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaram-se pelas ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciam-me os de Jaime; enfiava-me impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam, apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à porta dos teatros.
Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceu-me ouvir, num destes grupos, o nome de Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que já lá não estava. Devia ter-se afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceu-me, não sei porquê, que deveria ter esperado esta fuga; admirava-me de não ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças, arrastei-me até praça, subi para um táxi e dei a direcção da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.
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