Olhou-me com admiração, mas não ousou protestar e foi-me anunciar.
Logo que Astárito me viu veio ao meu encontro, beijou-me a mão e conduziu-me para um divã no fundo da sala. Já da primeira vez ele me tinha acolhido da mesma maneira e eu pensava que se portava assim com todas as mulheres que iam ao seu gabinete. Reprimi o mais possível a fúria que me dilatava o peito e disse-lhe:
— Toma cuidado, que se tu fizeste com que prendessem Jaime precisas de libertá-lo o mais depressa possível… senão podes ter a certeza de que nunca mais me verás!
Vi a sua cara tomar uma expressão de profunda admiração e pena. Compreendi que ele de nada sabia.
— Um momento! Que diabo! Qual Jaime? — perguntou-me, balbuciante.
— Julgava que sabias — disse-lhe.
E o mais rapidamente possível contei-lhe a história do meu amor por Jaime e a maneira como tinha sido preso, de tarde. Vi-o mudar de cor quando lhe disse que amava Jaime, mas preferi dizer a verdade porque não só receava prejudicar o meu amante mentindo, mas porque experimentava um desejo violento de gritar o meu amor a toda a gente. Agora, que descobrira que Astárito nada tinha a ver com a prisão, a cólera que me impulsionara até ali caíra; sentia-me de novo fraca e desarmada. Por isso, depois de ter começado a conversa com voz firme e animada, acabara-a num tom lamentoso. Os meus olhos encheram-se de lágrimas quando lhe disse com voz angustiada:
— E depois eu não sei o que lhe farão… Diz-se que lhes batem!
Astárito interrompeu-me:
— Está tranquila. Ainda se fosse um operário!… Mas um estudante…
— Mas eu não quero… não quero que esteja preso! — gritei com lágrimas na voz.
Em seguida calámo-nos. Tentava dominar a comoção e Astárito olhava. Pela primeira vez não me parecia disposto a aceder ao meu pedido. O desapontamento de me saber apaixonada por outro homem devia tornar-lhe repugnante a ideia de me ajudar. Acrescentei, pousando a minha mão na sua:
— Se conseguires que ele saia prometo-te que farei tudo o que tu quiseres.
Fixou-me com ar irresoluto. Se bem que não tivesse vontade alguma de o fazer, inclinei-me para ele e ofereci-lhe os lábios ao mesmo tempo que dizia:
— Então, fazes-me este favor?
Olhou-me hesitando entre o desejo de me beijar e a consciência do significado humilhante de um beijo semelhante, oferecido por pura tentativa de corrupção, com o rosto cheio de lágrimas. Depois afastou-me, levantou-se, disse que esperasse e desapareceu.
Agora já tinha a certeza de que Astárito tinha ido tratar de libertar Jaime. Na minha inexperiência dessas coisas imaginava-o a telefonar, num tom mal humorado, a algum comissário servil, ordenando-lhe que libertasse, imediatamente o estudante Jaime Diodatti. Contava os minutos com impaciência, e quando Astárito reapareceu levantei-me pensando em agradecer-lhe e ir-me logo embora ao encontro de Jaime.
Mas Astárito vinha com uma expressão estranha, desagradável, feita de desilusão, de raiva e de malícia.
— Porque dizes tu que o prenderam? — articulou secamente. — Disparou sobre os polícias e safou-se… um dos agentes está, moribundo, no hospital. Agora se o apanham, e apanham-no com certeza, já nada posso fazer.
O espanto cortou-me a respiração. Não tinha eu tirado as balas do revólver? É verdade que podia ter posto outras sem que eu soubesse. Em seguida senti uma grande alegria, mas era também a alegria de saber que ele matara um polícia, uma acção de que eu o julgava incapaz e que modificava totalmente a ideia que até então eu fazia dele. Admirei-me que a minha alma, habitualmente inimiga de toda a violência, aplaudia o acto desesperado de Jaime: no fundo era a mesma irresistível satisfação que experimentara outrora ao reconstruir na imaginação o crime de Sonzogne; mas desta vez acompanhada de uma espécie de satisfação moral. Em seguida pensava que o encontraria depressa e que fugiríamos juntos para nos escondermos; se fosse preciso iríamos para o estrangeiro, onde eu sabia que os refugiados políticos eram bem acolhidos: e o meu coração dilatava-se de esperança. Pensava ainda que uma nova vida iria realmente começar para mim; dizia para comigo que esta renovação da minha vida a devia a Jaime, à sua coragem, e sentia por ele gratidão e amor. Entretanto Astárito passeava de um lado para o outro no gabinete, com ar furioso e parando de vez em quando para mexer em qualquer coisa em cima da secretária. Eu disse tranquilamente:
— Isto significa que, depois de preso, ele teve coragem: disparou e pôs-se a salvo.
Astárito parou e olhou-me com uma expressão má que lhe crispou o rosto.
— Estás contente, não estás? — perguntou-me.
— É bem feito que tenha morto o polícia — disse eu com sinceridade. — O agente queria metê-lo na prisão… Tu terias feito a mesma coisa!
Respondeu-me com voz desagradável:
— Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o seu dever… Esse homem tinha mulher e filhos.
— Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões — disse-lhe. — E o agente já devia supor que, antes de se deixar engaiolar, um homem tenta seja o que for… Pior para ele!
Sentia-me tranquila porque me parecia ver Jaime a caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegrava-me já ao pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:
— Mas havemos de o apanhar! — gritou bruscamente. — Então imaginas que não o apanhamos?
— Eu nada imagino… Estou contente por ele se ter escapado… Só isso.
— Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto não ficará assim.
Passado um momento disse-lhe:
— Sabes porque estás tão furioso?
— Não estou furioso!
— Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer valer a tua generosidade comigo e com ele… e em vez disso ele escapou-te. É isto que te enfurece.
Vi-o levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras palavras vi o seu rosto desanuviar-se e tomar uma expressão mais serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceu-me de mau agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a que perguntas.
— Lamento-o por ti — disse pousando o auscultador —, mas a primeira comunicação referente à prisão desse estudante era errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes não só à casa dele mas também à tua… assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderam-no em casa da viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratava-se evidentemente de alguém que tinha contas a ajustar com a polícia.
Senti-me desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisão e Sonzogne procurava-me para se vingar! Fiquei tão aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.
Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximou-se de mim dizendo-me com ansiedade:
— Senta-te um instante. Conversemos! Nada há irreparável!
Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito deteve-me e balbuciou:
— Ouve, prometo-te que farei o impossível; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possível; está bem assim?
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