Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colava-me à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à esquerda do corredor alinhavam-se portas quase todas abertas; à entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mão. O corredor não era direito: era oblíquo e daí a pouco já não sabia onde estava. De vez em quando enfiava-me por uma passagem mais baixa e então era preciso subir ou descer três ou quatro degraus; cruzava outros corredores parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A certa altura pareceu-me andar num corredor que já tinha percorrido. Como passasse um guarda perguntei-lhe ao acaso: “Onde é o vice-comissário?” Indicou-me com um gesto uma passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta espécie de lombriga fazia um ângulo recto, abriu-se uma porta e apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na direcção do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um instante tive a impressão de que era Jaime.
— Jaime! — gritei, correndo para os alcançar. Mas alguém me segurou pelo braço. Era um policia muito novo, de cara afilada, moreno, com o quépi enfiado numa massa de cabelos pretos encaracolados.
— Que quer? Quem procura? — perguntou-me. Ao meu grito, os outros dois tinham-se voltado para mim e verifiquei ter cometido erro.
Expliquei com voz ofegante:
— Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o tinham trazido para aqui.
— Como se chama ele? — perguntou o agente, sem me largar, com um ar peremptório.
— Jaime Diodatti.
— Que faz ele?
— É estudante.
— Quando o prenderam?
Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar importância e que nada sabia. Disse-lhe com irritação:
— Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me dissesse onde é que ele está.
Estávamos sós no corredor. Olhou à volta, depois apertou-me e disse-me num tom claramente cúmplice:
— Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais dar-me um beijo.
— Não! Não me faça perder tempo! Deixe-me ir embora! — gritei cheia de raiva.
Dei-lhe um encontrão, desatei a correr, penetrei noutro corredor, vi uma porta aberta e para lá dessa porta uma sala maior do que as outras com uma secretária ao fundo, atrás da qual estava sentado um homem de meia idade.
Entrei e perguntei-lhe de um fôlego:
— Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti… o que prenderam esta tarde.
O homem levantou os olhos da secretária, onde estava um jornal desdobrado, e perguntou-me, estupefacto:
— Queria saber…
— Sim… para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta tarde.
— Mas quem é a menina? Como se atreveu a entrar aqui?
— Isso agora não interessa… diga-me só onde é que ele está.
— Mas quem é a menina? — repetiu berrando e dando socos na mesa. — Como se atreveu? Sabe onde está?
Compreendi que não conseguiria saber coisa alguma e que em compensação corria o risco de ficar presa também. E então não poderia já falar a Astárito e Jaime ficaria na prisão.
— Não tem importância. Enganei-me. Desculpe — disse retirando-me.
As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as minhas perguntas anteriores. Mas agora eu já estava ao pé da porta.
— Entra-se e sai-se fazendo a saudação fascista! — gritou mostrando-me um cartaz suspenso sobre a sua cabeça.
Disse que sim com a cabeça, para confirmar que ele tinha razão, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a saudação fascista e saí da sala recuando. Percorri o corredor todo, acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao acaso e desci à pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e saí para o ar livre.
O único resultado desta ida à polícia fora o ter-me feito passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho até ao Ministério de Astárito demoraria talvez três quartos de hora, até mesmo uma hora. Uma vez lá próximo sentar-me-ia num café e telefonaria a Astárito daí a vinte minutos.
Enquanto andava veio-me à ideia a possibilidade de esta prisão de Jaime ser uma vingança de Astárito. Astárito tinha uma posição importante, justamente na polícia política; com certeza que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da nossa ligação; nada havia de improvável que o seu cadastro tivesse passado pelas mãos de Astárito e que fosse ele, levado pelos ciúmes, que tivesse dado a ordem para prenderem o estudante. A esta ideia senti uma espécie de furor contra Astárito. Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentia-me capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer expiar amargamente a sua má acção, não sem pensar também com pavor que as coisas talvez não se tivessem passado dessa maneira e que com as minhas frágeis armas me preparava para combater um adversário obscuro e sem rosto, mais parecido com uma máquina bem afinada do que com um homem sensível e acessível a paixões.
Quando cheguei em frente do Ministério renunciei à ideia de me sentar num café e fui directamente telefonar.
Ao primeiro toque, desta vez, alguém levantou o auscultador e a voz de Astárito respondeu-me.
— Sou eu… a Adriana — disse eu impetuosamente. — Quero ver-te. Já. Imediatamente… é uma coisa urgente… Estou aqui ao lado do Ministério.
Pareceu-me que reflectia um momento e depois disse-me que podia ir. Era a segunda vez que subia a escada do Ministério de Astárito, mas com uma disposição de espírito bem diferente. Da primeira vez tinha medo da uma chantagem de Astárito, temia que ele desmanchasse o meu casamento com Gino, receava a vaga ameaça que todos os pobres sentem suspensa sobre as suas cabeças nos meios policiais. Chegara com o coração alanceado e a alma trêmula. Agora vinha de espírito agressivo decidida a servir-me de qualquer meio para socorrer Jaime e a fazer por minha vez chantagem com Astárito. Mas o meu amor por Jaime não chegava para explicar a minha agressividade. Neste estado de espírito entrava também o desprezo por Astárito, pelo seu Ministério e, na medida em que Jaime se ocupava da política, mesmo por ele. Nada percebia de política, mas talvez por causa da minha ignorância, ao lado do meu amor a Jaime, a política parecia-me coisa ridícula e sem importância. Lembrei-me de como Astárito gaguejava quando me via ou simplesmente me ouvia e pensava com satisfação que ele não gaguejava com certeza daquela maneira quando falava com os seus chefes — fosse ele Mussolini. Enquanto pensava nestas coisas caminhava com pressa pelos vastos corredores do Ministério e apercebia-me de que olhava com desprezo os empregados que encontrava. Apetecia-me arrancar-lhes os processos verdes ou encarnados que levavam debaixo dos braços e atirá-los pelos ares, espalhando todas aquelas maldosas folhas de interdições e de iniquidades. Disse em tom imperativo ao contínuo que veio ao meu encontro na antecâmara:
— Preciso de falar com o Sr. Astárito… depressa… tenho audiência marcada e não posso esperar…
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