Foi assim que eu cedi pela primeira vez, e que ficámos um ao lado do outro, ele com o braço em torno da minha cintura e eu hirta e digna! O criado entrou trazendo o segundo prato.
Apesar de Astárito continuar a apertar-me com força, comer fez-me passar o mau humor. O segundo prato era excelente, e eu bebia sem dar por isso todo o vinho que Gisela me servia sem parar. Em seguida serviram-nos fruta e um bolo. Eu não estava habituada a comer bolos, mas este era óptimo, e quando Astárito me ofereceu a sua parte não tive coragem de a recusar. Gisela, que também bebera muito, pôs-se a fazer macaquices com Ricardo, enfiando-lhe na boca gomos de tangerina e acompanhando cada gomo com um beijo. Eu sentia-me embriagada, mas não de uma maneira repugnante: deliciosamente embriagada! O braço de Astárito tinha finalmente deixado de me incomodar.
Gisela, cada vez mais excitada e vibrante, levantou-se para se sentar nos joelhos de Ricardo, e eu não pude deixar de rir ao ouvir o grito de dor que ele soltou como se Gisela o esborrachasse com o seu peso! De repente, Astárito, que até então estivera imóvel e se tinha limitado a conservar o braço em torno da minha cintura, começou a cobrir-me de beijos o pescoço, o peito e as faces. Desta vez já não protestei; primeiro porque estava demasiadamente embriagada para lutar e depois porque me parecia que era outra pessoa que ele beijava; tão-pouco eu tomava parte nessas expansões, conservando-me hirta e imóvel como uma estátua. Na minha embriaguez tinha a sensação de ser espectadora de mim própria, observando com fria curiosidade a furiosa paixão de Astárito por mim. Mas os outros tomaram a minha indiferença por amor, e Gisela gritou:
— Bravo, Adriana! Assim mesmo é que é!
Ia responder, mas não sei porquê mudei de ideias, agarrei no meu copo cheio e levantei-o, declarando: “Estou embriagada!”, e bebi-o de um trago. Julguei que o meu gesto seria aplaudido.
Mas Astárito parou de me beijar, olhou-me fixamente e disse em voz baixa:
— Vamos para ali!
Segui a direcção dos seus olhos e vi que indicavam a porta entreaberta do quarto de cama contíguo. Pensei que também ele estivesse embriagado, e disse que não com a cabeça, mas sem violéncia, até com um pouco de coquetterie. Ele repetiu como um sonâmbulo:
— Vamos para ali!
Reparei que Gisela e Ricardo já não riam e nos olhavam em silêncio. Gisela disse:
— Coragem! Para a frente! Porque esperas?
De súbito, tive a impressão de que a minha embriaguez passara. Na verdade eu estava embriagada, mas não ao ponto de não me aperceber do perigo que me ameaçava.
— Mas eu não quero! — disse.
E levantei-me.
Astárito levantou-se também e puxou-me o braço, tentando levar-me para junto da porta. De novo os outros o encorajaram:
— Coragem, Astárito!
Astárito arrastou-me quase até à porta, apesar de me debater. Mas com uma sacudidela desembaracei-me dele e corri para a outra porta, que dava para a escada. Mas Gisela tinha sido mais rápida do que eu:
— Não! Minha filha, não! — gritava-me.
Deixando os joelhos de Ricardo, tinha alcançado a porta antes de mim e fechara-a à chave com duas voltas.
— Mas eu não quero! — repeti num tom assustado, parando em frente da mesa.
— Que importância tem isso para ti? — gritou Ricardo.
— Idiota! — disse-me Gisela num tom duro empurrando-me para Astárito. — Vai… Vai… deixa-te de fitas!
Compreendi então que Gisela, levada pelo seu encarniçamento e pela sua crueldade, não se dava bem conta do que fazia; esta espécie de emboscada que me tinha preparado devia parecer-lhe uma coisa alegre, espirituosa e divertida. Outro pormenor que também me chamou a atenção foi a indiferença de Ricardo, que eu sabia ser bom e incapaz da menor crueldade.
— Mas eu não quero! — disse novamente.
— Que mal é que isso tem? — perguntou Ricardo. Gisela, excitadíssima, continuava a empurrar-me, dizendo:
— Não te julgava tão parva! Anda, porque esperas? Até ali, Astárito não tinha pronunciado uma única palavra; ficara imóvel junto da porta, com os olhos fixos em mim. Agora, tranquilamente, confusamente, como se as palavras tivessem uma consistência pastosa e lhe custasse deslocá-las dos lábios, disse:
— Vem. Se não vieres, digo ao Gino que passaste a tarde deitada comigo.
Compreendi imediatamente que cumpriria a ameaça. Podemos enganar-nos quanto ao sentido de uma frase, mas não quanto ao tom de uma voz. Astárito falaria com Gino e tudo acabaria para mim ainda antes de ter começado. Hoje penso que podia ter-me revoltado. Talvez que se tivesse gritado, se me debatesse violentamente, o tivesse persuadido da inutilidade da sua vingança. Mas isto podia também para nada servir, porque o seu desejo era mais forte do que a minha repugnância. O certo é que de repente me senti definitiva e absolutamente subjugada; e, muito mais do que o desejo de me defender, o que actuava em mim era a necessidade de evitar o escândalo que me ameaçava.
Na realidade, fora atraída à falsa fé, com o espírito completamente ocupado por doces projectos de futuro, aos quais de maneira nenhuma queria renunciar. O que me aconteceu depois foi tão brutal que hoje creio que, de uma maneira ou de outra, acontecem coisas a todos os que tem ambições, por mais modestas, mais inocentes ou mais legítimas que sejam, como era o meu caso. É pelas nossas ambições que a vida nos domina e castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem considerar-se livres e serenos.
Mas no próprio momento em que me submetia ao destino senti uma dor lúcida e aguda. Uma brusca iluminação — dir-se-ia que o caminho da vida, geralmente tão obscuro e tão tortuoso, aparecia de repente diante dos meus olhos perfeitamente plano e direito — revelou-me tudo o que eu ia perder em troca do siléncio de Astárito. Os meus olhos encheram-se de lágrimas; cobri a cara com as mãos e pus-me a chorar. Compreendi que chorava por excesso de resignação e não por um sentimento de revolta, porque, ao mesmo tempo que chorava, aproximava-me de Astárito. Gisela empurrava-me, repetindo:
— Mas por que demónio estás tu a chorar? Como se fosse a primeira vez!
Ouvi Ricardo rir e senti, embora não os visse, os olhos de Astárito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em lágrimas. Depois o seu braço rodeou a minha cintura e a porta do quarto fechou-se nas minhas costas.
Nada queria ver. Parecia-me que ter de sentir o que ia passar-se já era um martírio suficiente. Por isso, apesar dos esforços de Astárito, conservei obstinadamente o meu braço pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder como qualquer amante, isto é, levar-me lentamente, insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.
Mas a minha teimosia obrigou-o a ser mais brutal e mais rápido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar na beira da cama e tentado inutilmente convencer-me com carícias, empurrou-me para trás e deitou-se por cima de mim. O meu corpo, da cintura aos pés, estava inerte e pesado como chumbo: nunca mulher alguma foi possuída com mais abstinência e menos colaboração. Mas, entretanto, as minhas lágrimas secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito, tirei o braço da cara e abri os olhos.
Tenho a certeza de que nesse momento eu era tão amada por Astárito quanto uma mulher pode ser amada por um homem, seguramente muito mais do que por Gino. Lembro-me de que ele não se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeça aos pés e murmurando-me palavras de amor. Mas enquanto me acariciava eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu quarto com os seus móveis novos, ainda não completamente pagos, e sentia uma espécie de amargo alívio. Agora já nada me impedia de casar-me e de viver a vida a que aspirava. Mas ao mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado irremediavelmente: onde antigamente só havia esperança, ingenuidade e frescura existia agora segurança e resolução. Em resumo, sentia-me mais rica de uma força triste e privada de amor.
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