— É justamente por isso!
— Pensar — pronunciou então como se falasse consigo própria — que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Então, que devo dizer-lhe? Não queres reflectir?
— Não, não! Não aceito!
— És uma idiota! — disse-me Gisela, desapontada. — A isto chama-se recusar a fortuna!
Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais respondi sempre da mesma maneira, e foi-se embora muito descontente.
Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarrei-me de preferência à ideia do casamento e da existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.
O sacrifício que me tinha imposto punha-me entretanto na obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que anteriormente.
Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções. Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:
— Mas quem é? — perguntou por fim.
— Um senhor rico — disse-lhe. Tinha vergonha de confessar que era um polícia.
— Ela disse que ele era muito rico?
— Sim… parece que ganha muitíssimo bem!
Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.
— Ele viu-te — repetiu — e disse-lhe que se interessava por ti… Porque não to apresentou?
— A que propósito, se eu não posso?
— Que pena ele já ser casado!
— Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.
— Há tanta maneira de fazer as coisas! — disse minha mãe. — alguém que é rico… gosta de ti… uma coisa leva à outra… podia ajudar-te… sem te pedir nada!
— Não, não! — respondi. — Essa gente nada dá sem receber em troca.
— Nunca se sabe.
— Não, não — repetia eu.
— Nada quer dizer — disse minha mãe abanando a cabeça… — Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!
Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a propósito do meu noivado. Continuava a vê-la às escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer pôr maldade nesta observação:
— Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes que o noivo dela lhe dá.
— Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.
— Ele é que não agrada… Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!
— Mãe! — gritei, apavorada. — Que nem sequer te passe pela cabeça dizer-lho!
— Não, não! — respondeu muito depressa, como que arrependida. — Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!
— Se lhe fores dizer — gritei, pondo toda a minha paixão neste grito. — Nunca mais me verás!
Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disse-me um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo.
Precisava-se de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse torná-la menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.
Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzento-escuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.
Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela apresentou-mo dando-lhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavam-me mesmo, num certo sentido. Estendi-lhe a mão; levou-a aos lábios com uma devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentou-se ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto.
Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas, árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente o seu olhar dava-me a sensação de um dedo que ele passasse lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção me desgostasse, mas embaraçava-me.
Pouco a pouco senti-me no dever de me ocupar dele e de lhe falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um brilhante.
— Que anel tão bonito! — disse-lhe estouvadamente. Ele baixou os olhos para o anel sem mexer a mão e respondeu:
— Era o anel do meu pai. Tirei-lhe do dedo quando morreu.
— Oh! — disse para me desculpar. Depois acrescentei, indicando a aliança: — É casado?
— Com certeza que sim! — respondeu com uma espécie de ar complacente. — Tenho mulher e filhos.
— É bonita a sua mulher? — perguntei timidamente.
— Menos que você — disse-me sem sorrir, em voz baixa e enfática, como se anunciasse uma verdade importante. E a mão em que brilhava o anel tentou agarrar a minha. Desembaracei-me rapidamente dela e perguntei, para dizer qualquer coisa:
— Vive com ela?
— Não — respondeu-me. — Ela mora em… — e disse o nome de uma longínqua cidade de província — e eu aqui. Vivo só… Espero que venha visitar-me.
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