Fingi não me aperceber desta entrada, insinuada de uma maneira trágica e convulsa, e perguntei:
— Porque… não gostaria de viver com a sua mulher?
— Estamos legalmente separados — explicou-me, amuando. — Quando me casei era um garoto… foi minha mãe quem arranjou o casamento… Sabe bem como estas coisas se passam… uma rapariga de boa família, com um belo dote… são os pais que combinam o casamento, mas são os garotos que se devem casar! Viver com uma mulher… você seria capaz de viver com uma mulher como esta?
Tirou a carteira do bolso do peito, abriu-a e estendeu-me uma fotografia. Vi duas garotinhas com ar de gémeas, morenas, pálidas, todas vestidas de branco. Atrás delas, com as mãos pousadas nos seus ombros, uma mulherzinha morena e pálida, com os olhos unidos como os de um mocho e expressão maldosa.
Devolvi-lhe a fotografia. Ele tornou a guardá-la na carteira e depois disse-me num sopro:
— Não… queria viver consigo.
— O senhor não me conhece de lado algum! — respondi, desconcertada com a sua obsessão.
— Conheço-a muito bem. Há um mês que a sigo. Sei tudo a seu respeito.
Falava e continuava a ficar respeitosamente distante. Mas incessantemente a sua paixão dilatava-lhe os olhos.
— Estou noiva! — declarei-lhe.
— Gisela disse-me — pronunciou com voz estrangulada.
— Mas não falemos do seu noivo, que importa? — e fez um pequeno gesto com a mão, de afectada indiferença.
— Mas a mim importa-me, e muito — continuei. Olhou-me e repetiu:
— Gosto imensamente de si.
— Já dei por isso.
— Agrada-me enormemente — prosseguiu. — Talvez nem se aperceba de que maneira me agrada.
Falava realmente como um louco. Mas o que me tranqüilizava era ele estar sentado longe de mim e não tentar mais pegar-me na mão.
— Nada há de mau em que eu lhe agrade — disse-lhe.
— E eu, agrado-lhe?
— Não.
— Tenho dinheiro — disse ele com a cara crispada. Tenho muito dinheiro para a fazer feliz. Se vier ter comigo, verá que não terá de se arrepender!
— Não preciso do seu dinheiro — respondi com calma, quase com indiferença.
Pareceu não ouvir e disse, olhando-me:
— Você é muito bela!
— Obrigada.
— Tem uns lindíssimos olhos.
— Acha?
— Acho… e a sua boca é também muito bonita… quereria beijá-la.
— Porque me diz essas coisas?
— O seu corpo também o gostaria de cobrir de beijos… todo o seu corpo.
— Porque me fala dessa maneira? Estou noiva e casaremos dentro de dois meses.
— Desculpe, mas dá-me prazer falar destas coisas. Faça de conta que não é consigo. — Ainda estamos muito longe de Viterbo?
— Estamos quase a chegar… Almoçaremos lá. Prometa-me que se sentará ao meu lado à mesa.
Desatei a rir, porque no fim de contas uma paixão tão violenta lisonjeava-me:
— Está bem — disse eu.
— Vai sentar-se ao meu lado como agora — prosseguiu ele. — Contento-me em respirar o seu perfume.
— Mas eu não uso perfume! — exclamei.
— Hei-de oferecer-lhe um frasco, deixe estar! — respondeu.
Tínhamos chegado a Viterbo e o carro abrandou a velocidade para entrar na cidade. Durante todo o trajecto, Gisela e Ricardo, sentados à nossa frente, tinham-se conservado em silêncio. Mas quando começámos a percorrer lentamente as ruas repletas de gente, Gisela voltou-se para trás e disse-me:
— Como vai isso aí, com os dois? Tu julgas, se calhar, que nós nada vimos?
Astárito ficou calado, mas eu protestei:
— Tu não podias ter visto coisa alguma… temos vindo somente a conversar!
— Está bem! Está bem! — respondeu.
Fiquei profundamente admirada e um pouco irritada tanto com a atitude de Gisela como com o silêncio de Astárito.
— Mas se eu te digo… — confirmei.
— Está bem! Está bem! — repetiu ela. — Não estejas com medo! Nós nada diremos ao Gino!
Entretanto tínhamos chegado à praça e descido do automóvel.
Começámos a passear ao longo das ruas pelo meio do povo endomingado sob o sol de Outubro, doce e brilhante. Astárito não me largava um instante, sempre grave, até mesmo sombrio, com a cabeça hirta, emergindo do seu alto colarinho, uma mão no bolso e a outra a balouçar. Tinha o ar não tanto de me seguir, mas de me vigiar. Gisela, pelo contrário, ria alto com Ricardo; muitas pessoas voltavam-se para nos observar.
Entrámos numa pastelaria e tomámos vermute ao balcão. Reparei, de repente, que Astárito murmurava por entre dentes não sei que ameaças e perguntei-lhe o que se passava.
— É aquele imbecil que está ali à porta a olhar para si com uma insistência descarada! — respondeu-me, furioso.
Voltei-me e vi com efeito um rapazola louro, que olhava para mim encostado à porta do café.
— Que mal tem isso? — disse eu alegremente. — Olha-me!… E depois?
— Mas eu sou muito capaz de lhe partir a cara!
— Se o fizer nunca mais lhe falarei e nunca mais o conhecerei! — disse-lhe, aborrecida. — Não tem esse direito! O senhor não representa coisa alguma na minha vida!
Ele não respondeu e foi à caixa pagar o vermute. Saímos da pastelaria e recomeçámos o nosso passeio. O sol, o burburinho, o movimento das ruas, todas essas caras coradas e sadias de provincianos punham-me de bom humor. Quando chegámos a uma praçazinha fora do centro, ao fundo de uma rua perpendicular, eu exclamei de repente:
— Olhem! Se eu tivesse uma casinha como aquela — e mostrava uma bonita casinha de dois andares junto de uma igreja —, seria bem feliz de viver aqui!
— Meu Deus! Meus Deus! — gritou Gisela. — Viver na província! Então em Viterbo. Eu não anuía a isso nem que me pagassem em ouro!
— Depressa te aborrecerias, Adriana — disse Ricardo.
— Quem se habitua a viver na cidade já não pode viver na província.
— Vocês estão enganados! — disse eu. — Gostaria bem de viver aqui… com alguém que gostasse de mim… Quatro quartos, uma trepadeira, quatro anelas… De nada mais precisava.
Eu falava sinceramente, porque me via já com Gino nesta simples casita de Viterbo.
— Que diz? — perguntei dirigindo-me a Astárito.
— Consigo também lá viveria! — disse-me a meia voz para que os outros não o ouvissem.
— O teu defeito, Adriana, é seres demasiadamente modesta… Na vida, quando não se deseja muito, nada se consegue!
— Mas eu nada quero… — respondi.
— Nada, então? Nem casar com o Gino? — perguntou Ricardo.
— Isso sim!
Começava a fazer-se tarde; as ruas iam ficando desertas; entrámos num restaurante. A sala do rés-do-chão estava cheia, principalmente com aldeões de fatos domingueiros, que a circunstância de ser dia de feira tinha trazido a Viterbo.
Gisela ficou de mau humor e disse que o cheiro que havia ali lhe fazia faltar o ar e perguntou ao patrão se não podíamos comer no andar superior. O patrão disse que sim, que era possível e, precedendo-nos, fez-nos subir uma escadinha de madeira e entrar numa sala estreita e comprida com uma só janela, que dava para um beco. Abriu as persianas e fechou a janela. Depois estendeu a toalha numa mesa rústica que ocupava a maior parte da sala. Lembro-me de que as paredes eram cobertas por um velho papel fora de moda, rasgado em vários sítios, com flores e pássaros, e que do outro lado da mesa havia um pequeno armário envidraçado cheio de pratos.
Enquanto isto se passava, Gisela girava pela sala examinando tudo, espreitando até o beco pela janela. Acabou por abrir uma porta que parecia dar acesso a outra sala. Depois de lhe deitar uma olhadela, dirigindo-se ao dono da casa, perguntou com um ar natural o que vinha a ser aquela outra sala.
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