Camilo Castelo Branco - Carlota Angela
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Camilo Castelo Branco
Carlota Angela
I
Se a natureza formou uma bella creatura, não póde a fortuna precipital-a n'um incendio?
Shakspeare. ( Como vós o amaes. )Cette douce ivresse de l'âme devait être troublée.
Balzac. ( Albert Savarus. )Norberto de Meirelles e sua mulher D. Rosalia Sampayo, ricos proprietarios, moradores, em 1806, na rua das Taipas, da cidade do Porto, viam crescer prodigiosamente os seus cabedaes, e, com elles, uma filha unica, tão encantadora para os paes como a riqueza com que a iam enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista da terra.
Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa.
Eu tinha á minha disposição quatro exordios bonitos, que escrevi em quatro tiras, e rejeitei com desdem.
Era assim o primeiro:
«Diz-me tu, amor, que magos philtros insinuaste no coração da virgem de olhos negros, que lêda e melancolica, lagrimosa e risonha, te está enamorando na lua, d'onde lhe sorris em noites calmas de estio, na floresta, onde lhe cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe murmuras a tua linguagem do céo? Que ambrozia inebriante déste á doudinha que, tão requestada e alheada de brinquedos pueris, se vae, só e destemida, a buscar-te, por entre myrtos e rosaes, perseguindo-te como lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde volitam lucidos phalenos?»
Segundo exordio:
«Á viração da tarde tremulava ligeiramente a folhagem do renque de alamos que cintavam uma pintoresca vivenda do Candal. Um repuxo de crystallina limpha trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa musica, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem mágoas em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de cortiça, por onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada em alegrias intimas das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma graciosissima donzella… etc.»
Terceiro:
«Onde vae este gentil mancebo, tão á pressa e offegante pela calada da noite, subindo a collina do Candal, em cujo tôpo alveja uma casa, onde elle parece mandar adiante o coração em cada suspiro que o cansaço lhe tira do peito arquejante? Que visão alvissima, que fada ou sylpho é esse que desliza, rapido e volatil, por entre os alamos, e vem ao peitoril do muro, como a anciada Hero, restaurar o vigor do extenuado Leandro?… etc.»
Quarto, e ultimo exordio:
«Vou contar-vos uma historia que verifiquei nas fieis narrações de mais de vinte pessoas vivas. Ides ver até que ponto os paes podem infelicitar os filhos; até que ponto a missão augusta do segundo creador póde ser fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é amor, e d'onde começa a ser deshumanidade. Se alguma confiança devo ter na justiça congenial do coração humano, espero carear graça e indulgencia para uma filha que se rebella primeiro contra um pae, depois contra o falso deus que lhe impozeram como verdugo de mais alta e temerosa categoria, arbitro e claviculario das sempiternas moradas do inferno… etc.»
Ahi está o que eu tinha escripto. Tudo rejeitei, contra a opinião de um congresso de homens de delicado gosto, que votaram por qualquer dos quatro preludios, chasqueando-me a simpleza com que escrevi o quinto, acanhado e pêco como historieta sem nervo, nem imaginação.
E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso d'este romance me apodarem de insulso e desimaginoso.
é a minha divisa, e sel-o-ha emquanto este globo se não reconstruir á feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam.
Quem desde já sentir azias de bôca, deixe isto, e desenfastie-se com as conservas irritantes da França, e até das nacionaes, que tambem as temos, curtidas em vasilhas, francezas. Embora travem á hervilhaca, é o que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés litterarios, em menoscabo do classico cozinhado de Domingos Rodrigues.
Atemos o fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolencia do leitor se compraza com o alinho desaffectado e lhano d'este conto.
A filha unica de Norberto de Meirelles e D. Rosalia Sampayo chamava-se Carlota Angela, e tinha dezesete annos, em 1806.
Não era formosa; mas exquisitamente engraçada sim.
Norberto, filho de lavradores transmontanos, era campezino, rustico, e desageitado; Rosalia, com quanto procedente de progenie já cidadã desde seu avô, havia muito ainda que desbastar, e quatro gerações não tinham adelgaçado nada a raça originaria de Covas de Barroso.
Ora, a vergontea de troncos ou cepos taes não podia sair de compleição tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroinas dos romances.
As feições de Carlota eram sêccas e trigueiras; mas a magreza não era de debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas faces era a transparencia de sangue rico de toda a seiva dos dezesete annos. Tinha uma bonita fronte, e abundantes cabellos pretos, que ella enfeitava sem esmêro, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em tres tranças, que um laço de setim encarnado prendia na cintura em duas roscas. Á custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o penteado, em conformidade com a moda, que era ennastrar trancinhas de cabellos em dois grandes corações que ladeavam a cabeça, desde o vertice até ás orelhas, com matiz de lacinhos de varias côres: bonita cousa, antes da restauração das troixas contemporaneas, restauração, digo, porque as malas, no cucuruto da cabeça, começavam a decair do gosto em 1806.
O que fazia engraçadissima Carlota eram as espessas sobrancelhas, que formavam apenas um crescente das duas arcadas ciliares: tão imperceptivel era a cisura que as estremava na base do nariz. Bem sabem que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnifico docel: grandes, e negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das palpebras, se ajustavam n'um amortecer de tanta volupia, que mais não podia ser, sem feitiçaria!
Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a pintar. O de Carlota era irregular, talvez, ao contrario dos narizes de passaporte: era um nariz adunco, longo de mais para aquelle rosto; mas esta incongruencia, impressionando aos que a viam pela primeira vez, á segunda, não havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a bôca. Cada commissura ou canto dos labios terminava em dois vincos, um subindo, outro descendo, mas tão pronunciados, que pareciam um permanente riso sardonico, um não sei quê que fazia desconfiar as pessoas menos habituadas á sua convivencia.
Carlota era alta e gentil. Não se affectava para ser garbosa, que lhe sobejava graça e donaire nos naturaes meneios. O braço era incorrecto, fornido de mais em carnes, e de pelle trigueira; a mão longa e magra; e o pé proporcional á corpulenta haste.
Já agora, diga-se o porquê do cuidadoso recato em que a filha do snr. Norberto de Meirelles tinha os braços; não era a grossura do pulso, nem a pujança carnosa do ante-braço; era uma espessa camada de buço, lanugem, ou cabello, que a frenetica menina cerceava desde os quatorze annos, á tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam, chamando-lhe «pelluda».
Basta de materia: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher formosa; deram-se, porém, os traços principaes de Carlota, e são esses os que, na maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem de trinta annos, gasto de queimar incenso ás bellezas correctas, a cuja desanimação de commum accordo se chama «lindeza».
Vejamol-a espiritualmente.
Carlota Angela foi creada com descuidado mimo. Seus paes reviam-se n'ella, desculpavam-lhe todas as perrices, e fariam-a incorregivel, se a natureza se não corregisse a si propria.
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