Isso implica dizer que o inciso IV do artigo 36 do Código Brasileiro de Aeronáutica expressamente contempla uma hipótese de discricionariedade administrativa, dado que transmite ao Administrador Público a capacidade de determinar quando caberia a utilização da autorização como título habilitante para a exploração de aeródromos públicos .
Como é cediço, a discricionariedade administrativa advém de diversas formas de construção normativa. Além dos casos expressos em que a norma confere ao administrador a capacidade de escolha, há outras, como o caso em que a lei estabelece uma finalidade, sem delimitar os meios para seu alcance. 82Precisamente essa é a hipótese do artigo 36 do Código Brasileiro de Aeronáutica, pois nele há uma finalidade a ser alcançada –i.e., a construção e a exploração de aeródromos públicos– e possíveis meios para tanto. A autorização, nesse passo, é um instrumento para a realização de uma finalidade legalmente imposta.
Como sói ocorrer em casos desse jaez, a discricionariedade administrativa imanente poderia ser resolvida por meio de simples decisão concreta, aplicável a um caso específico, ou poderia ser objeto de um poder normativo da Administração Pública. Para maior segurança jurídica e padronização de decisões, optou-se por editar um ato normativo para a disciplina da matéria, o qual, por evidente, teve seu conteúdo determinado de forma igualmente discricionária 83.
Nesse trilhar, unindo-se as duas observações apresentadas acima, parece-me acima de qualquer possibilidade de questionamento que: (i) não é necessária qualquer alteração em lei parlamentar para a disciplina normativa da autorização aplicável a aeroportos privados e (ii) o único entrave que impossibilita referida autorização é o conteúdo do artigo 2º do Decreto 7.781/2012, o qual, por sua vez, é discricionário e, portanto, justificadamente poderá ser alterado .
Por via de consequência, tem-se que a autorização necessária para a implantação de um aeroporto privado demanda, simplesmente, uma alteração do Decreto 7.781/2012 e a inauguração de uma nova disciplina jurídica, em concretização de um poder normativo advindo da competência discricionária determinada pelo artigo 36 do Código Brasileiro de Aeronáutica. E essa nova disciplina jurídica poderá ser advinda de decreto presidencial ou de ato normativo editado pela própria ANAC , com clara preferência pela segunda hipótese em função da estrutura de construção do ordenamento setorial.
Explico-me.
Um decreto presidencial é ato normativo cabível para a disciplina jurídica de exercício de uma competência discricionária da Administração Pública. Disso poucos duvidam 84e já é discussão pacificada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 85. Portanto, é perfeitamente possível que em substituição ou em complementação ao Decreto 7.781/2012 seja editado novo decreto presidencial trazendo nova disciplina jurídica ao instituto da autorização do no setor de aeródromos públicos e, assim, disciplinando como esses aeródromos poderiam funcionar para receber voos comerciais e adotando os cânones delineados neste trabalho.
Contudo, o mesmo ato normativo poderia ser editado pela ANAC, o que seria, a meu ver, preferível à luz da estrutura do ordenamento setorial. Isso ocorre, pois, como é notório, ao se constituir uma autoridade reguladora independente para um determinado setor da economia, cria no Direito um sistema de administração policêntrica , eis que é criado um centro de poder autônomo não submetido a qualquer vínculo hierárquico ao Chefe do Poder Executivo e comprometido, por derivação direta da lei, com o funcionamento adequado de um setor da economia. Essas entidades são, na precisa definição de Sabino Cassese, órgãos estatais, mas não órgãos de governo 86.
Nesse passo, havendo, no setor de aviação civil, uma autoridade reguladora independente, incumbida de formular uma política setorial e assegurar o adequado funcionamento do mercado, parece-me evidente que deveria ser de sua ação a normatização da autorização para a implantação de aeródromos públicos. Considerando-se ser esse ato normativo a expressão de uma discricionariedade essencialmente técnica 87, deveria, idealmente, caber à autoridade reguladora competente – detentora da capacitação técnica no caso – editar um ato capaz de equilibrar todos os interesses existentes no setor regulado, balanceando as necessidades e obrigações do serviço público e a livre iniciativa e a livre concorrência no setor.
Portanto, com fundamento nos incisos XXI e XLVI da Lei 11.182/2005, parece-me evidente que caberia à ANAC, após o necessário processo administrativo, no âmbito do qual sejam realizadas audiências e consultas públicas, nos termos dos artigos 26 a 28 da mesma Lei 11.182/2005, editar ato normativo disciplinador do instituto da autorização na atividade de exploração de aeródromos públicos. Trata-se do mecanismo mais condizente com a estrutura normativa setorial que se inicia no Texto Constitucional e percorre caminho até ato normativo da ANAC.
Nesses quadrantes, parece-me inquestionável poder concluir este subtópico afirmando que, hoje, a autorização ora delineada para aeroportos privados é inviável, mas que, com simples alteração do Decreto 7.781/2012 e edição de novo ato normativo será ela plenamente possível, nos moldes ora propostos. E esse ato normativo poderá ser tanto decreto do Presidente da República, editado com fundamento no artigo 84 da Constituição Federal, quanto regulamento editado pela ANAC, nos termos da Lei 11.182/2005, parecendo-me a segunda possibilidade mais coerente à luz do ordenamento setorial.
IV. AEROPORTOS PRIVADOS E EXPLORAÇÃO DE MERCADO
Sem qualquer prejuízo de qualquer das afirmações precedentes e em complemento a elas, parece-me imprescindível tecer breves comentários acerca da estrutura de mercado a ser implementada, caso um aeródromo público explorado por meio de autorização venha a ser destinado à aviação comercial, ademais da aviação privada.
Isso ocorre, pois há uma série de dúvidas que emergem da criação de novo regime jurídico de exploração de atividade regulada, como, por exemplo, o regime tarifário, o regime de bens e o regime de concorrência com os aeródromos públicos sujeitos ao regime de serviço público.
Ao que me parece, o ponto de partida dessa discussão encontra-se em uma premissa fundamental: a assimetria regulatória . Ou seja, todas as discussões que seguem têm que obedecer à premissa de que a inauguração do regime de autorização para a atividade aeroportuária ampla (englobando a aviação comercial, portanto) implicará a coexistência de dois regimes jurídicos distintos de exploração da atividade: o regime de serviço público e o regime privado, em clara competição.
Como já expus no tópico III deste trabalho, a assimetria regulatória não é qualquer novidade no Direito Público brasileiro, existindo nos setores de telecomunicações, energia elétrica, portos e transportes ferroviário e rodoviário. Significa, como já dito, a submissão a níveis distintos de regulação agentes que exploram atividades distintas. Trata-se, como se afigura evidente, de decorrência lógica do crivo da proporcionalidade .
Parece-me aqui, para deslinde da questão, claramente aplicável a teoria da complementariedade dos instrumentos regulatórios , muito bem formulada na doutrina de Christian Koenig e Winfried Rasbach, segundo a qual a proporcionalidade na intervenção no direito da livre iniciativa dos agentes econômicos se dá pela necessidade de dosimetria na intensidade do uso dos instrumentos regulatórios, buscando-se um equilíbrio. Segundo os autores:
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