Ao ruído que esta cena causou, uma multidão de oficiais saiu do café, os transeuntes agruparam-se também, formando-se imediatamente um grande círculo, que ria, apupava e aplaudia, em volta daquele turbilhão formado por dois entes, que mal se conhecia serem um homem e uma mulher; o homem debatia-se, barafustando, já sem chapéu, a mulher semeava murros e pontapés a torto e a direito, uivando, desdentada e sem cabelos, pálida de cólera, horrível.
De repente, saindo do meio da multidão, um homem de elevada estatura agarrou a mulher por um braço e disse-lhe:
— Acompanha-me.
A mulher ergueu a vista e a voz furiosa extinguiu-se-lhe de súbito. Os olhos envidraçaram-se-lhe, de pálida tornou-se lívida, estremecendo de terror. No homem que a prendera reconheceu Javert.
O elegante, aproveitando aquela oportunidade, afastou-se rapidamente.
XIII — Solução de algumas questões de polícia municipal
Javert afastou os espectadores, rompeu o círculo e dirigiu-se a passos rápidos para a repartição de polícia, que ficava na extremidade da rua, arrastando a infeliz, que se deixava conduzir maquinalmente. Nem ele nem ela pronunciavam uma só palavra. A nuvem dos espectadores seguia-os, no paroxismo da alegria, com ditos e gracejos A suprema miséria causa obscenidades.
Apenas chegado à repartição de polícia, que era uma sala no rés do chão, aquecida por um fogão, com casa de guarda, uma porta envidraçada e gradeada que deitava para a rua, Javert abriu a porta e entrou com Fantine, fechando-a logo em seguida, com grande desapontamento dos curiosos, que se ergueram em bicos de pés e estenderam o pescoço para diante, tentando ver o que se passava lá dentro, através dos vidros foscos. A curiosidade é uma gulodice. Ver é devorar.
Fantine, apenas entrou, foi cair a um canto, imóvel e muda, acocorada como uma cadela assustada. O sargento da guarda pôs uma vela acesa em cima de uma mesa. Javert tirou uma folha de papel selado e pôs-se a escrever.
Esta classe de mulheres são, pelas nossas leis, postas inteiramente à disposição da polícia, que faz delas o que lhe apraz, punindo-as se assim lhe parece e confiscando-lhes a seu talante essas duas tristes coisas, que elas apelidam a sua indústria e a sua liberdade. Javert estava impassível; o rosto severo não lhe traía a mínima comoção; todavia, aquele homem estava grave e profundamente preocupado. Era uma dessas ocasiões em que ele exercia por sua conta e risco, mas com todos os escrúpulos de uma consciência severa, o seu temível poder discricionário. Em tais momentos conhecia perfeitamente que o seu banco de agente de polícia era um tribunal e ele um juiz. Javert julgava e condenava. Chamava todas as ideias que podia ter no espírito sobre a importante tarefa em que estava ocupado. Quanto mais examinava o procedimento daquela mulher, mais revoltado se sentia, porque era evidente que ele acabava de ver cometer um crime.
Acabava de ver, ali, no meio de uma rua, a sociedade, representada por um proprietário-eleitor, insultada e atacada por uma criatura colocada fora de tudo.
Um burguês insultado por uma prostituta. Ele, Javert, presenciara um tal atentado. Escrevia, pois, em silêncio. Depois de terminar, assinou, dobrou o papel e disse ao sargento, entregando-lho:
— Chame três guardas e conduza esta mulher à cadeia. — Em seguida, voltando-se para Fantine: — Tens cadeia para seis meses.
A infeliz estremeceu.
— Seis meses! Seis meses de prisão! — exclamou ela. — Seis meses a ganhar sete soldos por dia! Mas que será de Cosette? Minha filha, minha filha! Mas eu ainda devo mais de cem francos ao Thenardier, o senhor inspetor não sabe?
E arrastou-se no pavimento, húmido pelas botas enlameadas de todos aqueles homens, sem se levantar, de mãos postas, andando de joelhos.
— Senhor Javert implorou ela tenha piedade de mim. Juro-lhe que não tive culpa. Se o senhor presenciasse tudo, veria! Juro-lhe por Deus que não fui a culpada! Foi aquele senhor, que eu não conheço, que me deitou neve nas costas. Porventura os outros têm direito para nos fazerem semelhante coisa, quando nós vamos a passar sossegadamente, sem fazermos mal a ninguém? Aquilo fez com que eu saísse de mim. O senhor bem vê como eu sou doente; e depois, havia já algum tempo que ele me provocava. Bem sei que sou feia e que me faltam dentes, não é preciso que mo digam. Mas mesmo assim não lhe respondi e dizia para mim própria: «O que ele tem é vontade de se divertir». Portara-me bem com ele, não lhe dirigi uma única palavra. Foi então que me deitou a neve nas costas. Senhor Javert, meu bom senhor inspetor! Pois não estava ali ninguém que visse como aquilo foi, para lhe dizer que falo verdade? Fiz talvez mal em ter levado o caso àquele ponto, mas o senhor sabe perfeitamente que no primeiro momento não nos podemos conter. Isto sucede a toda a gente. Sentir nas costas, quando não se espera, uma coisa tão fria! Bem sei que fiz mal em rasgar o chapéu daquele senhor, mas para que se foi ele embora? Pedir-lhe-ia perdão. Desculpe-me por esta vez, senhor Javert. Olhe, o senhor não sabe isto: nas prisões não se ganha senão sete soldos, eu bem sei que não é por culpa do governo, mas em todo o caso não se ganham senão sete soldos, e imagine que tenho de dar cem francos, ou então mandam-me a minha filha e eu não posso tê-la comigo. É tão vergonhosa a minha vida! Minha pobre Cosette! O que será daquele anjinho de Nossa Senhora! Olhe, são uns estalajadeiros, os Thenardier, é gente do campo que não sabe pensar, o que eles querem é dinheiro. Não me mande para a prisão, senhor Javert. Tenha dó duma criancinha a quem atirarão para o meio da rua, no coração do inverno, e que não tem mais ninguém no mundo senão eu. Se já fosse crescidinha ganharia a sua vida, mas naquela idade não se pode fazer nada. Eu não sou má mulher, ainda que o pareça. Não foi por ser mandriona, que cheguei ao estado em que me encontro. A miséria é que me tem feito beber aguardente; eu não gosto de semelhante coisa, mas faz com que a gente se esqueça da desgraça. Em tempos mais felizes, bastava olharem para as minhas gavetas, para verem logo que eu não era uma desleixada, que só pensava em enfeitar-se. Tenha dó de mim, senhor Javert!
Fantine falava assim, curvada, com o corpo em convulsões, produzidas pelo arquejar dos soluços, com a vista turva das lágrimas, o pescoço nu, torcendo as mãos, sem poder evitar a tosse seta que lhe embargava a palavra, balbuciando com a voz lenta da agonia. A dor é um raio divino e terrível que transfigura os miseráveis.
Fantine tornara-se bela naquele momento. De vez em quando beijava humildemente o casaco do inspetor. Teria enternecido um coração de granito, mas um coração de pau não se enternece.
— Vamos — disse Javert — já te ouvi! Se não tens mais nada a dizer, segue para o teu destino. Nem o Padre Eterno em pessoa te poderá valer!
Ouvindo as solenes palavras: «Nem o Padre Eterno em pessoa te poderá valer», Fantine compreendeu que era irrevogável a sua sentença e, perdendo de todo a esperança, caiu sobre si mesma, murmurando:
— Piedade!
Javert voltou-lhe as costas e os guardas seguraram-na pelos braços.
Um homem havia entrado, poucos minutos antes, sem que ninguém desse por tal e encostara-se à porta depois de a ter fechado, escutando as súplicas desesperadas de Fantine.
No momento em que os guardas deitavam as mãos à infeliz, que não queria levantar-se, ele deu um passo em frente, dizendo:
— Um instante, se fazem favor!
Javert ergueu os olhos e, reconhecendo o senhor Madelaine, tirou o chapéu, saudando-o com modo acanhado, em que bem se conhecia a contrariedade:
— Queira desculpar, senhor maire...
As palavras «senhor maire » produziram em Fantine um estranho efeito. Ergueu-se repentinamente, direita e inflexível como um espectro que sai das entranhas da terra, com os braços repeliu os soldados e, antes de poderem segurá-la, foi direita a Madelaine. Depois, olhando-o fixa e com ar desvairado, exclamou:
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