Naquela mesma noite, Javert escreveu uma carta que foi pessoalmente entregar na administração do correio de Montreuil-sur-mer no dia seguinte pela manhã. Era para Paris e ia dirigida ao senhor Chafoouillet, secretário do senhor prefeito da polícia. Como o caso passado na repartição de polícia se havia divulgado, tanto os empregados do correio, como outras pessoas que viram a carta antes de seguir o seu destino e reconheceram a letra de Javert, julgaram que era a sua demissão o que ele enviava.
Madelaine apressou-se a escrever aos Thenardier, aos quais Fantine devia cento e vinte francos e a quem ele remeteu trezentos, dizendo-lhes que se pagassem daquela quantia e trouxessem logo a criança a Montreuil-sur-mer, onde sua mãe doente a reclamava.
Os Thenardier ficaram deslumbrados.
— Com a fortuna! — exclamou o estalajadeiro, dirigindo-se à mulher. — Não devemos entregar a pequena, parece-me que vai ser uma mina. Eu já sei o que isto é: foi algum papalvo que se agradou da mãe.
A sua resposta foi uma conta de quinhentos e tantos francos. Nesta conta figuravam, deitando a mais de trezentos francos, duas verbas incontestáveis: uma de um médico e outra de um boticário, os quais tinham sido, respetivamente, assistente e fornecedor dos remédios em duas longas doenças de Azelma e Eponine. Cosette nunca estivera doente. Bastava portanto uma substituição de nomes para o negócio ser perfeito.
Thenardier escreveu no fim da carta: Recebi por conta trezentos francos.
Madelaine enviou imediatamente mais trezentos francos, recomendando que não se demorassem em mandar Cosette.
— Pois sim! Agora é que não a devemos largar!
Entretanto, Fantine não melhorava e continuava a permanecer na enfermaria.
As irmãs de caridade só com repugnância é que a princípio aceitaram e trataram «daquela mulher perdida». Quem tem visto os baixos-relevos de Reims, lembra-se da intumescência do lábio inferior das virgens castas olhando para as mulheres impúdicas. Este antigo desprezo das vestais pelas mulheres da vida fácil é um dos mais profundos instintos da dignidade feminina; sentiram-no as irmãs, com o acréscimo de intensidade que lhes dá a religião. Fantine desarmou-as, porém, em poucos dias, com as suas palavras cheias de doçura e humildade e com aquele enternecimento a que se não pode vedar o coração em presença de uma mulher que é mãe.
Um dia, as irmãs ouviram-na dizer, no meio do delírio da febre:
— Tenho sido uma pecadora, mas se chegar a ter comigo a minha filha, é porque Deus me perdoou. Enquanto estive na má vida, não quis Cosette na minha companhia, porque não poderia suportar o espanto triste dos seus belos olhos. Contudo, foi por ela que eu me fiz má, e é talvez por isso que Deus me perdoou. Sentirei a bênção do Senhor quando ela aqui estiver vendo a sua inocência, sentir-me-ei melhor. Ela não sabe nada. É um anjo, minhas irmãs. Naquela idade, ainda se conservam as asas.
Madelaine ia vê-la duas vezes por dia, e ela perguntava-lhe sempre:
— Quando verei a minha Cosette?
— Talvez amanhã — respondia-lhe ele. — Deve chegar de um momento para o outro.
E o rosto pálido da mãe resplandecia.
— Que felicidade eu vou ter! — dizia ela.
Fantine não se restabelecia, pelo contrário, o seu estado agravava-se de semana para semana. Aquele punhado de neve aplicado sobre a pele nua, entre as duas omoplatas, determinara uma súbita supressão de transpiração, em virtude da qual veio a declarar-se-lhe com a maior violência a doença que ela havia muitos anos como que chocava dentro de si. Começavam então a seguir-se as belas indicações de Laeinnec no estudo e tratamento das doenças de peito. O médico observou Fantine e abanara a cabeça.
Madelaine perguntou ao clínico:
— Então?
— Ela não tem uma filha a quem deseja ver? — inquiriu o médico.
— Tem.
— Nesse caso apresse-se em a mandar buscar.
Madelaine sentiu um estremecimento.
— O que disse o médico? — perguntou-lhe Fantine.
Madelaine respondeu, esforçando-se por sorrir:
— Disse que lhe mandasse buscar a sua filha, porque bastaria isso para lhe dar saúde.
— E tem razão! — replicou ela. — Mas que interesse têm os Thenardier para se demorarem tanto em ma trazer? Não pode tardar. Vejo finalmente a felicidade perto de mim.
Entretanto, os Thenardier não largavam a pequena, dando para isso uma série de péssimas razões. Cosette andava um pouco adoentada, para se expor ao risco de fazer a jornada no inverno. E, além disso, havia ainda umas dividazitas importunas na terra, cujas contas andava a ajuntar, etc., etc.
— Mandarei alguém buscar Cosette — disse Madelaine — e, se for preciso, irei eu mesmo.
Sob a indicação de Fantine, escreveu a seguinte carta, fazendo-a depois assinar:
Senhor Thenardier:
Queira ter a bondade de entregar Cosette ao portador desta carta. As pequenas dívidas de que fala ser-lhe-ão todas pagas. Sou com a maior consideração
Fantine.
Entretanto, sobreveio um grave incidente. Por mais que lidemos para modelar com a perfeição que nos é possível essa misteriosa massa de granito de que a nossa vida é feita, jamais chegamos a fazer-lhe desaparecer o véu negro, nela impresso pela mão do destino.
II — Como Jean se pode tornar Champ
Uma manhã, estando Madelaine no seu gabinete ocupado a pôr em ordem alguns negócios urgentes, relativos ao seu cargo, para os deixar prontos caso se tornasse necessária a sua ida a Montfermeil, vieram dizer-lhe que o inspetor Javert pretendia falar-lhe. Madelaine, ouvindo este nome, não pôde furtar-se a uma impressão desagradável. Javert, desde a ocorrência da repartição de polícia, evitava-o mais do que nunca, de modo que Madelaine não o tornara a ver.
— Mandem-no entrar — disse ele.
Javert entrou.
Madelaine ficara sentado ao pé do fogão, com uma pena na mão e os olhos postos num maço de papéis, que folheava e anotava e que continha autos de contravenções de posturas. Não se mexeu, pois, de onde estava, em respeito de Javert. Não podia deixar de lembrar-se da pobre Fantine e convinha-lhe mostrar-se glacial.
Javert cumprimentou respeitosamente o maire, que estava de costas para ele, continuando a fazer as suas anotações, sem sequer o encarar.
O inspetor de polícia deu dois ou três passos no gabinete e parou, sem quebrar o silêncio.
Um fisionomista que fosse familiar com a natureza de Javert, que tivesse estudado aturadamente aquele selvagem servidor da civilização, aquele extravagante composto do romano, do espartano, do frade e do caporal, aquele espião incapaz de uma mentira, aquele esbirro virgem, um fisionomista que tivesse conhecimento da secreta e antiga aversão que ele professava a Madelaine, o seu conflito com o maire, e que naquele momento o observasse, teria dito consigo: «O que terá acontecido?» Era evidente, para quem conhecesse aquela consciência reta, clara, sincera, proba, austera e feroz, que Javert conseguira resolver algum problema íntimo. Javert não sentia nada na alma, que o não deixasse transluzir no rosto. Era, como as pessoas de génio violento, sujeito a mudanças repentinas. Nunca a sua fisionomia denotara mais estranha e inesperada expressão. Ao entrar, inclinou-se ante Madelaine, com um olhar em que não havia nem rancor, nem cólera, nem desconfiança; parara a alguns passos de distância por trás da cadeira de braços em que o maire se achava sentado e ali se conservava ainda, de pé, numa atitude quase disciplinar, com a rudeza ingénua e fria de um homem que nunca soube o que era a afabilidade e foi sempre paciente; esperava sem proferir uma palavra, sem fazer um movimento, numa humildade verdadeira e numa resignação tranquila, que aprouvesse ao maire voltar-se; sereno, sério, de chapéu na mão e olhos baixos, com uma expressão que marcava o meio termo entre o soldado diante do superior e o réu na presença do juiz.
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