— E então? — interrompeu Madelaine.
Javert respondeu com o seu ar incorruptível e triste:
— Senhor maire , a verdade é a verdade. Fiquei contristado, mas ele é Jean Valjean. Reconheci-o também.
Madelaine disse em voz muito baixa:
— Está bem certo de não se ter enganado?
Javert riu com esse riso doloroso em que se expande às vezes uma profunda convicção e respondeu:
— Mais do que certo.
Em seguida, conservou-se um instante pensativo, pegando maquinalmente em pitadas de areia do areeiro que estava sobre a mesa e acrescentou:
— E agora que eu vi o verdadeiro Jean Valjean, não posso até entender como cheguei a julgar outra coisa. Peço-lhe, portanto, que me perdoe, senhor maire.
Ao dirigir estas palavras suplicantes e graves àquele que seis semanas antes o havia humilhado no departamento de polícia, dizendo-lhe: «Saia daqui!», Javert, o homem altivo, apresentava, sem que o suspeitasse, o aspeto da mais simples dignidade.
Madelaine respondeu à sua súplica com esta repentina pergunta:
— E o que disse esse homem?
— Ah, senhor maire, o caso é péssimo! Se é Jean Valjean, há reincidência. Escalar um muro, partir os ramos de uma árvore, furtar uma pouca de fruta, para uma criança é uma diabrura; para um homem é um delito; mas para um forçado é um crime. Ora, no facto de que se trata houve escalamento e roubo. Já não pertence portanto à polícia correcional, pertence ao tribunal do júri, não são alguns dias de cadeia, são as galés por toda a vida. E depois, há ainda a história do rapaz saboiano, que estou certo não deixará de ser apresentada. Com os diabos! Qualquer outro que não fosse Jean Valjean tinha com que se entreter. Mas Jean Valjean é um grande manhoso. Até nisso o reconheci. Se fosse outro, sentir-se-ia quente com o caso; inquietar-se-ia, daria por paus e por pedras. A caldeira canta sempre ao pé do lume e não quereria ser Jean Valjean. Ele, pelo contrário, finge não perceber o que lhe dizem: «Sou Champmathieu, ninguém me tira disto!» Mostra-se muito admirado e finge-se estúpido, porque lhe parece melhor assim. O maroto é esperto, mas não lhe serve de nada a esperteza, porque há todas as provas. Sendo, como é, reconhecido por quatro pessoas, é por força condenado. Vai ser conduzido perante o júri de Arras, para onde estou citado como testemunha.
Madelaine aproximara-se novamente da mesa, lançando mão do maço de papéis e continuando a folheá-lo tranquilamente, lendo e escrevendo como que deveras ocupado com o que estava fazendo. De repente, voltou-se para Javert e disse-lhe:
— Está bem, Javert. Afinal de contas, interessam-me muito pouco todos esses pormenores. Estamos a perder tempo quando há tanto que fazer. Vá imediatamente a casa daquela pobre mulher chamada Buseaupied, que vende hortaliça à esquina da rua de Saint-Saulve, e diga-lhe que apresente a sua queixa contra o carroceiro Pedro Chesnelong. Este homem é um bruto que ia esmagando a pobre mulher e seu filho, por isso deve ser punido. Em seguida vá a casa do senhor Charcellay, na rua Montre-de-Chamipigny, que se queixou de que uma goteira da casa vizinha lhe deita a água da chuva para a sua, deteriorando-lhe os alicerces. Verifique depois se são exatas as contravenções das posturas, que me participaram, na rua Guibourg, em casa da viúva Doris, e na rua do Garraud-Blanc, em casa da senhora Renée le Bossé, lavrando o competente auto no caso de o serem. Mas parece-me que isto é trabalho demais. Não tem de se ausentar? Não me disse que ia a Arras, daqui a oito ou dez dias, por causa do tal julgamento?
— Antes disso, senhor maire.
— Então quando?
— Parece-me ter dito ao senhor maire que o julgamento tinha lugar amanhã e que por isso partia esta noite na diligência.
Madelaine fez um movimento impercetível e tornou:
— E quanto tempo durará o julgamento?
— Um dia, quando muito. A sentença será proferida o mais tardar amanhã à noite. Mas eu não esperarei pela sentença, que é infalível; assim que acabar o meu depoimento, voltarei imediatamente.
— Está bem! — disse Madelaine.
E despediu Javert com um gesto. Este, porém, não se moveu.
— Perdão, senhor maire — disse ele.
— Quer mais alguma coisa? — perguntou Madelaine.
— Senhor maire, resta-me recordar-lhe...
— O quê?
— Que devo ser demitido.
Madelaine levantou-se.
— Javert, o senhor é um homem honrado, por isso merece a minha estima. Exagera a falta que cometeu, e demais, é uma ofensa que só a mim diz respeito. O senhor é digno de subir e não de descer. Espero que continue no exercício das suas funções.
Javert fitou Madelaine com o seu olhar cândido, no fundo do qual parecia ver-se-lhe a consciência pouco esclarecida, mas rígida e casta, e retorquiu com voz tranquila:
— Não lhe posso conceder isso, senhor maire.
— Repito-lhe que é uma coisa que só a mim diz respeito — replicou Madelaine.
Porém, Javert, sem se afastar do seu pensamento, continuou:
— Quanto a exagerar o que fiz, não é tanto assim. Eis aqui o meu raciocínio. Suspeitei do senhor injustamente.
— Isto não valia nada. Temos o direito de suspeitar, conquanto seja abuso suspeitar dos que nos são superiores.
— Mas é que eu denunciei-o como forçado, sem provas, num acesso de cólera, e com o fim de me vingar, ao senhor, um homem respeitável, um maire, um magistrado! Isto é grave quanto pode ser. Eu, agente da autoridade, ofendi a autoridade na pessoa do senhor maire! Se algum dos meus subordinados tivesse feito o que eu fiz, declará-lo-ia indigno do serviço e tê-lo-ia expulso. Mais uma palavra, senhor maire. Tenho sido frequentes vezes, durante a minha vida, severo para com os outros; era justo que assim fizesse. Agora, se não fosse severo para comigo, tudo que tenho feito de justo tornar-se-ia injusto. Acaso devo eu poupar-me mais do que poupei aos outros? Não, decerto. Se só servisse para castigar os outros e não a mim, seria um miserável e teriam razão os que me chamam velhaco e mau! Senhor maire, não desejo que me trate com bondade; a sua bondade azedou-me o sangue manifestando-se para com os outros, portanto não a quero para mim. Bondade má chamo eu à que consiste em dar razão à mulher pública contra o burguês, ao agente de polícia contra o maire, ao que está num lugar inferior contra o que ocupa uma posição superior. Com essa bondade desorganiza-se a sociedade. Meu Deus, ser bom é fácil, o que custa é ser justo! Esteja certo, senhor maire, que se o senhor fosse o que eu julguei que era, não me acharia, com certeza, bondoso! Senhor maire, eu devo tratar-me, consoante trataria qualquer outro. Quando reprimia os malfeitores, quando procedia contra os tratantes, dizia muitas vezes a mim mesmo: «Se tu algum dia tropeças, se chegas a cair em alguma falta, fica descansado que não me escapas!» Ora eu tropecei, caí numa falta, tanto pior! Devo ser demitido, expulso, humilhado É apenas o que deve ser Tenho bons braços, pouco se me dá ir pegar numa enxada. Senhor maire, o bem do serviço exige um exemplo. Peço, pois, a demissão do inspetor Javert.
Tudo isto fora pronunciado em tom humilde, mas altivo, desesperado e convicto, que dava não sei que estranha grandeza àquele homem, por quem as leis da honra eram tão desusadamente interpretadas.
— Pois veremos — disse Madelaine, estendendo-lhe a mão.
Javert recuou e disse com ar feroz:
— Desculpe-me, senhor maire, mas isto não deve ser. Um maire não aperta a mão a um beleguim. — E acrescentou por entre dentes: — Sim, beleguim; desde o momento que servi mal a polícia, não sou mais do que um beleguim!
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