— Que lindos cabelos! — exclamou o barbeiro.
— Quanto me dá por eles? — perguntou Fantine.
— Dez francos.
— Então, corte-os.
Comprou em seguida uma saia de malha e mandou-a aos Thenardier, que ficaram furiosos com isso. O que eles queriam era dinheiro. Todavia, deram a saia a Eponine e a pobre Cotovia continuou a tiritar.
Entretanto, Fantine dizia consigo:
— Agora já a minha querida filha não terá frio. Vesti-a com os meus cabelos.
E para ocultar a cabeça rapada, começou a usar umas toucas muito simples, que nem mesmo assim a desfeavam.
No coração de Fantine começou então a travar-se tenebrosa luta. Quando viu que já não podia pentear-se, começou a odiar tudo o que a rodeava. Por muito tempo participara da veneração geral pelo senhor Madelaine; todavia, à força de repetir a si mesma que fora ele quem a expulsara, e que era ele o causador da sua desgraça, passou a odiá-lo também. Quando passava em frente da fábrica à hora do descanso dos operários, fingia rir e cantarolar.
Uma operária, já velha, que um dia a viu rir e a cantar daquela maneira, exclamou:
— Aquela rapariga por força acabará mal!
Fantine arranjou um amante, o primeiro homem que encontrou e a quem não amava, mas aceitou-o por despeito, com a raiva no coração. Era um miserável, uma espécie de músico mendigo, um gatuno ocioso, que a moeu de pancadas e por fim a deixou como ela o aceitara, com indiferença.
Ela porém, adorava a filha.
Quanto mais fundo descia, quanto mais sombrio se tornava tudo em roda dela, mais aquele anjo lhe resplandecia no fundo da alma. Dizia para consigo: «Quando eu for rica, Cosette estará sempre na minha companhia!»
E desatava a rir. A tosse, porém, não a abandonava e o suor corria-lhe pelas costas quase continuamente.
Um dia recebeu uma carta dos Thenardier, concebida nestes termos:
Cosette foi atacada por uma doença que anda por estes sítios e a que chamam febres biliares. Os remédios precisos são muito caros e não os podemos pagar. Se não manda quarenta francos por estes oito dias, a pequena decerto morre.
Fantine, após a leitura, desatou a rir às gargalhadas, dizendo para a velha, sua vizinha:
— Que graça eles têm! Quarenta francos! Nem mais nem menos do que dois napoleões? Onde querem eles que os vá buscar? Esta gente do campo sempre é muito estúpida!
Subiu entretanto a escada e foi ler a carta outra vez à luz de uma trapeira. Desceu-a depois e saiu a correr, saltando e rindo sempre. Uma vizinha, encontrando-a naquele desatino, perguntou-lhe:
— Porque está tão alegre?
— Por causa duma tolice que acabam de me escrever umas pessoas do campo — respondeu ela. — Então não me pedem quarenta francos? Sempre são muito estúpidos!
Ao passar na praça, viu muita gente rodeando uma carruagem de forma extravagante, em cima de cujo tejadilho, de pé, arengava um homem todo vestido de vermelho. Era um dentista charlatão que oferecia ao público dentaduras completas, pós dentífricos e elixires.
Fantine introduziu-se no grupo e começou a rir, como todos os outros, daquela arenga, em que havia gíria para a gente baixa e fraseado para a gente de bem. O dentista, vendo aquela formosa rapariga a rir-se, exclamou de repente:
— Que bonitos dentes a menina tem! Se me quiser vender as suas duas palhetas, dou-lhe um napoleão em ouro por cada uma.
— Mas o que são as palhetas? — perguntou Fantine.
— As palhetas — tornou o dentista — são os dentes da frente, os dois de cima.
— Que horror! — exclamou Fantine.
— Dois napoleões! — rosnou uma velha desdentada, que ali se encontrava. — Esta é uma criatura feliz!
Fantine deitou a fugir, tapando os ouvidos para não ouvir a voz rouquenha do homem, que continuava a gritar-lhe.
— Pense bem, minha flor, olhe que dois napoleões podem servir para muita coisa. Se acaso se resolver, encontrar-me-á à noite na estalagem do Convés de Prata .
Fantine regressou a casa, furiosa, e contou o caso à sua vizinha Margarida.
— Já viu uma coisa assim? Não é abominável o demónio do homem? Consentirem que semelhante gente ande assim a correr as terras! Arrancar-me os meus dois dentes da frente! Ficaria horrível! Os cabelos tornam a crescer, mas os dentes! O maldito do homem! Antes queria deitar-me de um quinto andar, de cabeça para baixo! Disse-me que à noite estaria no Convés de Prata!
— Quanto lhe ofereceu ele? — perguntou Margarida.
— Dois napoleões.
— São quarenta francos.
— É verdade — disse Fantine — são quarenta francos!
Ficou pensativa, mas foi pegar na costura. Passado um quarto de hora, pôs de parte a costura e foi para a escada reler a carta dos Thenardier. Tornando a entrar, voltou-se para Margarida que estava a trabalhar ao pé dela, e perguntou:
— Mas que vem a ser uma febre biliar, sabe?
— Sei — respondeu a velha —, é uma moléstia.
— E é preciso tomar muitos remédios?
— Oh, um horror de remédios!
— E como se manifesta?
— Ora! É uma doença que ataca a gente, como se vê.
— Ataca também as crianças?
— Principalmente as crianças.
— Mas não se morre disso?
— Oh, se morre! — exclamou Margarida.
Nessa mesma noite saiu e várias pessoas a viram dirigir-se para o ponto de Paris onde estão situadas as estalagens.
No dia seguinte, Margarida, ao entrar no quarto de Fantine antes do amanhecer, pois trabalhavam sempre juntas, para deste modo não gastarem senão uma luz, deu com ela sentada na cama, pálida e gelada. Não se tinha deitado. A touca caíra-lhe para cima dos joelhos e a vela, toda a noite a arder, estava quase completamente consumida.
Margarida estacou no limiar, petrificada em presença de tão grande desalinho, e exclamou:
— Valha-me Deus! A vela toda gasta! Sucedeu por força alguma coisa!
Depois olhou para Fantine, que tinha voltado para ela a cabeça desguarnecida de cabelos.
A pobre rapariga havia envelhecido dez anos desde a véspera.
— Santo nome de Jesus! — exclamou Margarida.
— O que é que tem, Fantine?
— Não tenho nada — respondeu ela. — Pelo contrário, estou muito satisfeita. A minha filha já não morre por falta de socorros.
E, dizendo isto, mostrou à velha dois napoleões que brilhavam em cima da mesa.
— Santo Deus! — exclamou a velha. — Como obteve esse dinheiro?
— Ora, obtive-o! — respondeu Fantine, sorrindo ao mesmo tempo. Era um sorriso cruel, aquele abrir de lábios. Ao clarão trémulo da vela que lhe batia no rosto, viam-se-lhe nos cantos dos lábios uma saliva avermelhada e um buraco negro na bolça. Os dois dentes haviam sido arrancados.
Fantine remeteu os quarenta francos para Montfermeil.
— Porém, tudo aquilo fora um ardil dos Thenardier para obter dinheiro. Cosette não estava doente.
Desesperada, atirou o espelho pela janela fora. Havia tempo que se mudara do quarto do segundo andar para umas águas-furtadas, fechadas apenas com um ferrolho; era um desses sótãos, cujo tato faz ângulo com o soalho e onde a cada instante se dá com a cabeça nas vigas. O pobre não pode chegar ao fim do seu albergue, senão curvando-se mais e mais, como para chegar ao fim do seu destino. Fantine já não tinha leito, restavam-lhe uns farrapos a que ela chamava cobertor, uma enxerga que deitava no chão e uma cadeira arrombada. Uma roseirinha que tinha, jazia a um canto, seca, esquecida. Noutro canto, estava uma lata das que servem para manteiga, cheia de água, que de inverno gelava, deixando por muito tempo marcados com círculos de gelo os diferentes níveis da água. Conto perdera a Vergonha, assim perdeu a garridice. Último sinal. Saía já à rua com as toucas muito sujas; e ou fosse por falta de tempo ou por desleixo, não remendava a roupa. A medida que os calcanhares das meias se iam rompendo, ia-os ela puxando para debaixo dos pés, o que se lhe conhecia por certas rugas perpendiculares. Remendava o seu colete velho e roto, com bocados de pano cru, que se tornavam a rasgar ao menor movimento.
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