Afeito do Aventino se aprazia,
27 Sob as penhas, de sangue em fazer lago.
“Dos seus irmãos não segue a companhia,
Por haver depredado, fraudulento,
30 Armentio, que próximo pascia.
“Tiveram fim seus crimes: golpes cento
Sobre ele desfechou de Alcide a clava:
33 Aos dez perdera já a vida o alento”. —
Foi-se o centauro enquanto assim falava.
Abaixo eis três espíritos chegando,
36 Nos quais nenhum de nós inda atentava,
“Quem sois?” — romperam súbito bradando.
A Narração então suspende o Guia;
39 E só deles curamos, escutando.
Nenhum dessa companha eu conhecia;
Mas então, como às vezes acontece,
42 Um, chamando por outro, assim dizia:
“Onde é Cianfa, que assim desaparece?”
Dedo nos lábios fiz nesse momento
45 A Virgílio sinal, por que atendesse.
Em crer o que eu contar se fores lento,
Não há de ser, leitor, para estranhado;
48 Quase o que eu vi descrê meu pensamento.
Quando eu dos três a vista era engolfado,
Sobre seis pés se via uma serpente
51 Contra um deles e o tem todo enlaçado.
Abraçam-lhe os do meio rijamente
O ventre; aos braços aos de cima rendem,
54 Ambas as faces morde-lhe furente.
Os de baixo nas coxas já se estendem,
Interpondo-se a cauda, que, subindo
57 Por detrás, voltas dá que os rins lhe prendem.
Hera, de árvores os ramos recingindo.
Não os enleia tanto, como a fera
60 Alheios membros ao seu corpo unindo.
Fundiram-se depois, de quente cera
Com feitos; travando as suas cores,
63 Um nem outro parece o que antes era:
Como em papel, do fogo ante os ardores
Procede escura cor; inda não sendo
66 Negro, vão fenecendo os seus albores.
Os dois, a maravilha percebendo,
Gritavam-lhe: — “Ai! Agnel, quanto hás mudado!
69 Um já não és mas dois ser não podendo!”
Numa cabeça as duas se hão tornado;
Confundidos estavam dois semblantes
72 Num rosto, em que se haviam misturado.
São dois os braços, que eram quatro de antes,
Foram coxas e pernas, ventre e peito
75 Membros, que nunca hão tido semelhantes.
Perdeu-se assim todo o primeiro aspeito;
Seres dois e nenhum nessa figura
78 Se via; e o montro foi-se a passo estreito.
Quando o fervor canicular se apura,
Cruza o lagarto, como o raio, a estrada,
81 E uma mouta deixando, outra procura.
Tal menor serpe, lívida, inflamada.
Negrejando, qual bago de pimenta,
84 Aos outros dois se arroja acelerada.
E na parte, por onde se alimenta
Primeiro a vida nossa, um dos dois fere
87 E ante ele tomba em queda violenta.
Olha o ferido, mas nem voz profere;
E sobre os pés imóvel bocejava,
90 Como quem sono prenda ou febre onere.
Fitava olhos na serpe, e esta o encarava;
A chaga de um eu via, do outro a boca
93 Fumegar; e o seu fumo se encontrava.
Emudeça Lucano, quando toca
Em Sabelo infeliz mais em Nascídio.
96 Escute: mor portento ora se evoca.
De Cadmo e Aretusa cale Ovídio:
Se fonte a esta, àquela fez serpente,
99 Não o invejo: aqui há pior excídio,
Não converteu dois seres frente a frente,
Tanto que permutasse formas duas
102 Sua própria matéria de repente.
Desta sorte compõem-se as partes suas:
A cauda à serpe fende-se em forquilha,
105 Cerra o ferido em uma as plantas nuas.
Tal prisão coxas, pernas envencilha
Que em breve nem vestígio há de juntura,
108 Sinal, ou numa ou noutra, de partilha.
Fendida a cauda assume essa figura
Que perde o homem; numa é tão macia
111 A pele, quanto noutro fez-se dura.
Entrar os braços nas axilas via;
Tanto estendia os curtos pés a fera,
114 Quanto o outro os seus braços encolhia.
Os pés o drago extremos retorcera,
Na parte, que se esconde, se mudando,
117 Que em duas no mesquinho se fendera.
Enquanto o fumo os dois ia velando
De nova cor e a serpe o pelo empresta,
120 Que em todo perde o pecador nefando,
Ergue-se um, cai o outro e no chão resta,
Os ímpios olhos sem torcer, que viram
123 Dos gestos seus a conversão funesta.
Ao que era em pé às frontes lhe subiram
Do rosto as sobras: cada face afeita
126 Uma orelha, de duas, que saíram.
Quanto de mais ficara então se ajeita,
O nariz conformando-lhe na cara
129 E de lábios lhe ornando a boca estreita,
A beiça o que jazia dilatara;
Qual caramujo, que as antenas cerra,
132 À cabeça as orelhas retirara.
A língua unida e no falar não perra
Partiu-se, enquanto a do outro, forquilhada,
135 Uniu-se; o fumo desde então se encerra.
Essa alma, que em réptil era mudada,
Pelo vale arremete sibilando,
138 Falando, a outra escarra e a segue irada.
Depois, seu novo dorso lhe voltando,
Disse à terceira sombra: “Corra o Buoso,
141 Como eu, por esta senda rastejando”.
Assim vi no antro sétimo espantoso
Mútuas transformações: tanta estranheza
144 Desculpe o canto rude e descuidoso.
Posto empanar dos olhos a clareza
E entrar o assombro no ânimo eu sentisse,
147 Não fugiram com tanta sutileza,
Nem tão prestes que eu bem não discernisse
Puccio Sciancato, que dos três somente
Fora o que transmudado se não visse,
151 Deu-te o outro, Gavili, dor pungente.
14. Nem o ousado etc., Capaneu, V. Inf. XIV. — 25. Caco , ladrão, ao roubar o rebanho de Hércules, para despistar, puxou as ovelhas pela cauda. — 43. Cianfa dei Donati , ladrão florentino que veremos transformado em serpente. — 68. Agnel , Agnello Brunelleschi, ladrão florentino. — 95. Sabelo e Nascidio , personagens dos “Farsálias” de Lucano que, mordidos por cobras, mudam de aspecto. — 97. Cádmio e Aretusa , personagens das “Metamorfoses” de Ovídio que se transformam o primeiro em serpente e o segundo numa fonte. — 149. Puccio Scianeato , ladrão florentino.
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