Inda uma vez, travadas serpes duas
45 E outra vez com bordão as separara.
“Volta-lhe Arons ao ventre as costas nuas:
De Luni em monte, aos agros iminentes,
48 Onde o Carrara ergueu moradas suas,
“Teve em gruta marmórea permanente
Estância, donde contemplar podia
51 As estrelas, as ondas livremente.
“Essa mulher” — continuou meu Guia —
“Que o seio oculta em traça flutuante
54 E de velos a pele tem sombria,
“Foi Manto, que vagara incerta e errante
Até pousar na terra, em que hei nascido.
57 No que ora digo irei um pouco avante.
“Vendo o pai já da vida despedido
E a cidade de Baco em jugo triste,
60 O mundo largo tempo há percorrido.
“Junto ao Alpes na bela Itália existe,
Além Tirol, já perto da Alemanha,
63 Um lago, que chamar Benaco ouviste.
“Veia de fontes mil, que a plaga banha
Entre Garda, Camônica e Apenino,
66 De águas conduz ao lago cópia manha.
“Ilha há no meio, em que o Pastor trentino,
E com ele os de Bréscia e de Verona,
69 Possuem de benzer juro divino.
“Onde é mais baixa do Benaco a zona,
A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,
72 Pesqueira, forte em bastiões, se entona.
“É dali que das águas o excedente,
Que ter em si não pode o lago, brota
75 Em rio e cobre os prados largamente.
“Quando prossegue, outro apelido adota,
Chama-se Míncio, perde o nome antigo:
78 No Pó junto a Governol, há fim sua rota.
“No verão à saúde traz perigo;
Em vasto plaino o álveo dilatando,
81 Forma paul, das infeções amigo.
“Manto, a virgem selvage ali passando,
Terreno viu desabitado, inculto
84 Naquele pantanal, que o está cercando
“Esquiva a humano trato e estranho vulto,
Fez ali de suas artes oficina
87 E viveu té sofrer da morte o insulto.
“Povo, ao diante, para ali se inclina,
Em torno esparso, e abrigo, o julga forte:
90 De águas cercado com pauis confina.
“Onde aqui o elegeu colhera a morte,
A cidade erigiram, que chamaram
93 Mântua, do nome seu sem tirar sorte.
“Os habitantes lá mais avultaram,
Quando ainda os ardis de Pinamonte
96 De Casalodis a insânia não fraudaram.
“Ciente fica, pois: se de outra fonte
A pátria minha originar quiserem,
99 A mentira à verdade nunca afronte”. —
— “As cousas, que tuas vozes me referem,
Tão certas são” — disse eu — “que me parece
102 Carvão extinto o que outros me disserem.
“Mais dize, ó Mestre: acaso não merece
Dos que avançam nenhum reparo ou nota?
105 Na mente de o saber desejo cresce”. —
— “Aquele, a quem do mento ao dorso brota
Barba esquálida, um áugur se dizia,
108 Quando de homens a Grécia tal derrota
Teve, que infantes só no berço havia.
Em Áulide com Calcas indicara
111 Tempo, em que a frota desferrar devia.
“Eurípilo chamou-se: assim narrara
Num dos seus cantos, a tragédia minha,
114 Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.
“Esse, que, tão delgado, se avizinha,
Miguel Escotto foi, que, certamente,
117 Perícia em fraudes da magia tinha.
“Olha Guido Bonati, encara Asdente
Que cuidar só devera da sovela:
120 Arrepende-se agora inutilmente.
“Das tristes ora a turba se revela,
Que, desdenhando a agulha, a horrível arte
123 De encantos infernais acharam bela.
“Mas no limite, que hemisférios parte,
É Caim com seu fardo, o mar tocando,
126 Lá de Sevilha além do baluarte.
“A lua, a face plena já mostrando
(Te lembras?) ontem viste na sombria
Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. —
130 Assim falando, a passo igual seguia.
34. Anfiarau , que morreu no sítio de Tebas, e prevendo a sua morte tentara esquivar-se de tomar parte nesse sítio. — 40. Tirésias , adivinho tebano, que foi transformado em mulher e depois retornou homem. — 46. Arons , adivinho lembrado na “Farsália” de Lucano. — 55. Manto , filha de Tirésias, que a tradição diz ter fundado a cidade natal de Virgílio, Mântua. — 63. Benaco , hoje lago de Garda. — 95-96. Quando ainda etc. Pinamonte dei Bonacolsí para apoderar-se de Mântua induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos que revoltaram o povo contra ele. — 110. Calcas , adivinho da antiguidade. — 112. Eurípilo , outro célebre adivinho.— 116. Miguel Escotto , célebre adivinho do tempo de Frederico II. — 118. Guido Bonati , astrólogo do conde Guido de Montefeltro. — Asdente , sapateiro e adivinho de Parma.
No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro.
ASSIM, de ponte em ponte, discursando
Do que nesta comédia se não cura,
3 De outro arco acima nos subimos, quando
Detemo-nos por ver a cava escura,
Por ouvir de outros prantos vão sonido;
6 Com pasmo olhei a hórrida negrura.
No arsenal de Veneza, derretido
Como referve o pez na estação fria
9 Para reparo ao lenho combalido,
Incapaz de vogar: qual com mestria
Baixel novo constrói; qual alcatroa
12 O que teve em viagens avaria;
Qual pregos bate à popa qual à proa;
Qual remos faz, qual linho torce ou parte;
15 Qual mezena e artemão aperfeiçoa:
Assim, por fogo não, por divina arte
Betume espesso, ao fundo refervia,
18 As bordas enviscando em toda parte.
Mas no pez só na tona eu distinguia
Borbulhão, que a fervura levantava,
21 Que ora inchava, ora rápido abatia.
No fundo enquanto os olhos eu fitava,
Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! —
24 Para si donde eu era me tirava.
Voltei-me então como homem, que apressado
É por saber o que fugir convenha,
27 De súbito pavor sendo atalhado,
Olha sem que por isso se detenha,
E logo atrás de nós eu vi correndo
30 Negro demônio sobre aquela penha.
Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo
Nos meneios parece e temeroso,
33 Veloz nos pés e as asas estendendo!
No dorso agudo e enorme um criminoso,
Escarranchado, em peso, carregava:
36 Dos pés prendia o nervo ao desditoso.
— “Malebranche!” já perto ele bradava —
— “Eis um dos anciões de S. Zita!
39 Mergulhai-o, pois torna à gente prava,
“Que nessa terra em grande soma habita.
Venais todos lá são menos Bonturo.
42 O no , por ouro, lá se muda em ita “. Ao pez o arroja, e pelo escolho duro Se torna: após ladrão tanto apressado 45 Não vai mastim, que estava antes seguro: O maldito afundou; surdiu curvado. Sob a ponte os demônios lhe gritaram: 48 — “Não acharás aqui Vulto Sagrado, “Nem banhos, quais no Serchio se deparam. Se não queres no pez star imergido. 51 A te espetar as fisgas se preparam”. — Com croques cem mordendo esse descrido — “Bailar” — disseram — “deves bem coberto; 54 Se puderes furtar, furta escondido”. — Tal ordem em cozinha o mestre esperto Aos ajudantes seus que na caldeira 57 Mergulhem naco à tona descoberto. — “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira Molestar-te em te vendo, busca abrigo: 60 Num recanto o acharás desta pedreira. “Não temas que me ofenda o bando imigo; Muito bem sei como o furor lhe afronte; 63 Já venci de outra vez igual perigo”. — Até o extremo então passou da ponte; Mas, quando a sexta borda já subia, 66 Mister lhe foi mostrar serena fronte. Qual fremente matilha, que se envia Ao pobre, quando para esbaforido 69 E pede alívio à fome que o crucia: De baixo arremeteu-lhe o bando infido, Aceso em ira, os croques seus brandindo. 72 Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido! “Os croques suspendi: até mim vindo Me preste algum de vós atenção toda. 75 Fere, se ousais porém antes me ouvindo”. Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!” Enquanto os mais ficavam no seu posto, 78 — “Que queres?” — disse alguém que sai da roda; E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto Que as ameaças vossas superasse 81 Para aqui vir, se por celeste gosto E supremo querer não caminhasse? Deixa-me ir; pois a lei divina ordena. 84 Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”. De Malacoda o orgulho já serena; Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado 87 Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”. E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado Estás entre os penedos cauteloso, 90 Volve a mim, do temor descativado”. Corri para Virgílio pressuroso. Eis os demônios todos investiram: 93 Roto o concerto, pois, cria ansioso. De Caprona os soldados, que saíram A partido assim vi que estremeciam, 96 Quando envoltos de imigos se sentiram. Nos sevos gestos seus se me prendiam Os olhos, e a Virgílio vinculado 99 Os braços o meu corpo todo haviam. Os croques inclinados: — “No costado Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam. 102 E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!” Ao que o Mestre falava desprouveram Palavra tais, e então bradou depressa: 105 “Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram. Depois assim nos disse: — “Andar por essa Rocha não podereis; jaz destruído 108 Todo arco sexto sem restar-lhe peça. Se avante quereis ir, seja seguido Desta borda o caminho: não distante 111 Está rochedo ao passo apercebido. “Ontem, cinco horas mais do que este instante Mil e duzentos com sessenta e seis 114 Anos houve: é então a rocha hiante. “Dos sócios meus na companhia ireis; Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se. 117 Ide em paz: molestados não sereis. “Calcabrina, Alichino vão juntar-se Com Cagnazzo, a decúria comandando 120 Barbariccia! E não podem separar-se “Droghinaz, Libicocco, deste bando! Graffiacane, o dentudo Ciriatto, 123 Farfarel, Rubicante vão marchando! “Na ronda cada qual se mostre exato! Sejam a salvo os dois encaminhados 126 Da ponte ao arco até agora intato!” “Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!” Se sabes ir só, vamos prontamente; 129 De guias tais dispensam-se os cuidados. “Se tu és, como sóis, Mestre, prudente, Não vês que os dentes seus estão rangendo, 132 Que nos encaram com furor crescente?” “Não temas” — disse o Mestre, respondendo — “Ranger os dentes deixa-os a seu gosto: 135 É contra os que ardem lá no pez horrendo”. À sestra os dez então fizeram rosto; Nos dentes cada qual mostra primeiro, Por mofa a língua ao cabo já disposto; 139 E ele trompa fazia do traseiro.
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