3 Um lugar: Malebolge o nome havido.
Lá no centro do plaino inficionado
Se escancara grão poço, amplo e profundo:
6 Direi a compostura em tempo asado.
Espaço em torno estende-se rotundo
Entre o poço e o penhasco pavoroso:
9 Reparte-se em dez cavas o seu fundo.
Qual de fossos dobrados, cauteloso,
Se apercebendo, o alcáçar se assegura
12 Dos assaltos de imigo poderoso:
De abismos tais o aspecto se afigura.
Como da levadiça ponte entrada,
15 Aos de fora, do mundo na cintura,
Assim, do val no fundo começada,
Cada cava uma rocha atravessava
18 Em arco, para o poço concentrada.
De nós o monstro aqui se descargava:
À sestra mão seguiu logo o poeta,
21 E eu de perto fiel o acompanhava.
Novo tormento à destra me inquieta,
Novos algozes vejo, novas dores,
24 De que a primeira cava era repleta.
Stão lá no fundo nus os pecadores:
Do meio contra nós muitos caminham,
27 Outros conosco, em passos já maiores.
Em Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do jubileu no tempo, sobre a ponte
30 Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:
De um lado andavam, os que tendo em fronte
O castelo, a S. Pedro se endereçam,
33 E do outro lado os que iam para o monte.
Daqui, dali nas bordas, os apressam
Cornígeros demônios, açoitando
36 Com grandes azorragues, que não cessam,
Como aos golpes primeiros cada bando
Se apressa! Como cada qual evita
39 Que se repita o estímulo execrando!
Nesse andar minha vista num se fita,
Da parte oposta vindo, e logo eu disse:
42 — “Hei conhecido esta figura aflita”. —
Atentei mais, por que melhor o visse;
Deteve-se comigo o doce Guia
45 E deu que atrás o passo eu dirigisse.
Aos olhos esquivar-se-me queria,
Os seus baixando; mas foi vão o intento.
48 —“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.
“Se as feições não mudou-te o passamento
Venedico tu és Caccianemico.
51 Por que trato padeces tão cruento?” —
— “De mau grado o que exiges significo;
Mas cedo ao claro som dessa loquela,
54 Que à memória me traz o mundo inico.
“Eu fui aquele, que Ghisola bela
Do Marquês entreguei ao vil desejo:
57 Ora a verdade a minha voz revela.
“Comigo de Bolonha muitos vejo;
Com tantos nesta cava choro e peno,
60 Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.
“De dizer sipa entre o Savena e o Reno, Se a prova queres, lembra-te somente 63 De que em nós da avareza influi veneno”. — Mas um demônio o atalhou. Furente, Disse tangendo: — “Ó rufião, avante! 66 Mulher não há que vendas impudente!” — Ao Mestre me tornei; — pouco distante Era um rochedo, a que nos acercamos; 69 Da riba se elevava pra diante. Assaz ligeiramente nos alçamos; Fomos pela fragura à mão direita 72 E o eterno recinto assim deixamos. Chegados onde a curva estava feita Para passagem dar aos fustigados, 75 O sábio Guia disse: — “A face espreita “Agora desses outros malfadados, Em que ainda atender não conseguiste, 78 Porque não stavam para nós voltados”. — Da antiga ponte divisamos triste, Longa fileira: contra nós andava. 81 Cruel açoite em flagelar persiste. Virgílio, quando eu nada perguntava, — “Repara bem” — me diz — “na sombra altiva, 84 A quem pranto de dor faces não lava. “De Rei conserva a majestade viva! É Jasão: conquistou por força e manha 87 O velocino em Colcos fera e esquiva. “A Lenos foi, depois que horrenda sanha Feminil aos varões cortara a vida, 90 Nenhum poupando aquela fúria estranha. “Ali, de amor no enlevo embevecida, Hipsífile enganou, que já iludira 93 Suas irmãs, de compaixão movida. “Grávida e só deixou-a: atroz mentira Mereceu-lhe dos tratos a amargura. 96 Vingada está Medéia, a quem traíra. “Quem perjurou como ele, há pena dura. Do val primeiro baste o que sabemos 99 E de quantos aqui sofrem tortura”. — Numa estreita vereda já nos vemos, Que co’a borda segunda se cruzava, 102 Sustentando outra ponte, a que tendemos. Turba dali ouvimos, que chorava De outra cava no encerro e que, assoprando, 105 Com suas próprias mãos se arrepelava. Estava-lhe as paredes incrustando A exalação que sobe e ali se prende. 108 Ferindo o olfato e a vista horrorizando. E tanto pelo abismo a cava estende, Que só divisa quando está no fundo 111 Quem lá do cimo, perscrutando, atende. Subimo-nos: então no fosso imundo Vi gente em tal cloaca mergulhada, 114 Que a sentina figura ser do mundo. Enquanto olhava ali tão conspurcada Cara notei, que distinguir não pude, 117 Se padre ou leigo fora a alma danada. — “Dizei por que tua vista não se mude De mim, a imundos tantos desatenta!” — 120 Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude, “Te vi sem cabeleira tão nojenta. Alessio Interminei de Lucca hás sido: 123 Em ti por isso a vista é mais atenta”. — Ferindo a face, disse-me o descrido: — “Aqui lisonjas vis me submergiram; 126 Língua indefessa em bajular hei tido”. — Logo depois que vozes tais se ouviram, Meu Guia: — “Olhos dirige um pouco avante, 129 E as feições me declara se atingiram “De mulher desgrenhada e petulante Que de unhas asquerosas se lacera, 132 Mudando de postura a cada instante. “É Taís, a meretriz, que respondera Ao namorado seu, quando dizia: — “Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” — 136 Mas vamos: temos visto em demasia”. —
50. Venedico Caccianemico , bolonhês, que induziu sua irmã Ghisola a entregar-se a Obizzo d’Este, marquês de Ferrara. — 61. Dizer sipa etc., palavra do dialeto bolonhês que vale por sim ou seja . — 86. Jasão , chefe dos argonautas, que, auxiliado por Medéia, que ele seduziu e depois enganou, conquistou em Cólquida o velocino de ouro. — 92. Hipsífiles , enganada por Jasão. — 122. Aléssio Interminei , patrício de Lucca. — 133. Taís , meretriz, personagem de uma peça de Terêncio.
No terceiro compartimento, onde os Poetas chegam, são punidos os simoníacos. Estão eles, de cabeça para dentro, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do compartimento. As plantas dos pés, que estão fora dos buracos, são queimadas por chamas. Dante quer saber quem era um danado que mais do que os outros agitava os pés. É o papa Nicolau III da Casa Orsini, o qual diz que estava à espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta, indignado, rompe numa veemente invectiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos. Virgílio, depois, o leva novamente para a ponte.
Ó SIMÃO MAGO, ó míseros sequazes
Por quem de Deus os dons só prometidos
3 A virtude, em rapina contumazes,
Por ouro e prata estão prostituídos!
Por vós tange ora a tuba sonorosa:
6 Jazeis na tércia cava subvertidos.
À outra tumba chegamos temerosa,
Da rocha nos subindo àquela parte,
9 Que, a prumo ao centro, eleva-se alterosa.
Saber supremo! Que inefável arte
Mostras no céu, na terra e infernal mundo!
12 Oh! teu poder quão justo se reparte!
Por toda a cava, aos lados e no fundo
Furos na pedra lívida se abriam,
15 De igual largura e cada qual rotundo.
Semelhar na grandeza pareciam
Aos que em meu S. João belo e esplendente
18 Para batismo ministrar serviam.
Quebrei um, não há muito, mas somente
Para infante salvar, que ali morria:
21 Fique a verdade a todos bem patente.
De cada um orifício eu sair via
Os pés, até das pernas a grossura,
24 De um pecador: o resto se sumia.
Stavam ardendo as plantas na tortura,
E tanto as juntas rijo se estorciam,
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