69 Foi um; de Deus se declarara imigo.
“Os crimes seus no inferno se agravaram;
Já disse-lhe, as blasfêmias, os furores
72 Digno prêmio em seu peito lhe deparam.
“Vem agora após mim; pelos fervores
Não caminhes da areia incandescente;
75 Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —
Fomos andando, cada qual silente,
Até onde jorrar do bosque eu via
78 Rubro arroio, que lembro inda tremente.
Do Bulicame qual o que saía,
Das pecadoras em serviço usado:
81 Tal pela adusta areia este corria.
As margens e orlas são de cada lado
Feitas de pedra e assim também seu leito:
84 Caminho ali notei ao passo azado.
“De quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois que atrás deixamos essa porta,
87 A cujo ingresso todos têm direito,
“Não se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha que iguale a desta veia,
90 Em que a flama adurente fica morta”. —
O Mestre diz e assim desejo ateia
De rogar-lhe me preste esse alimento,
93 Que excitado, o apetite haver anseia.
“Do mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído país, Creta afamada.
96 Com seu rei foi do mal o mundo isento.
“Alça-se ali montanha outrora ornada
De fontes e verdor: chama-se Ida:
99 Erma está, como cousa desprezada.
“Foi ao filho pra berço preferida
De Réia, que abafava o seu vagido
102 Fazer mandando grita desmedida.
“Nas entranhas do monte um velho erguido
Está: voltando à Damieta as costas,
105 Como a espelho, olha Roma embevecido.
“De ouro faces e fronte são compostas,
De pura prata são braços e peito,
108 Enéias do busto as partes bem dispostas.
“De ferro estreme tudo o mais foi feito,
O pé direito exceto, que é de argila,
111 Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.
“Salvo do ouro, do mais sempre destila
De lágrimas por fenda crebro fio,
114 Que fura a gruta e rápido desfila.
“Aos negros vales vem correndo em rio,
Forma Stige, Aqueronte e Flegetonte,
117 Desce depois neste canal esguio
“Até do inferno o fundo, aonde é fonte
Do Cocito. O que o rio acaso seja
120 Verás: mister não é que ora te conte”. —
— “Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize, ó Mestre, a razão por que a torrente
123 Só neste abismo lôbrego se veja”. —
“É circular este lugar horrente,
E posto haja vencido extenso trato,
126 Descendo tu à esquerda, inteiramente
“Não hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não revele o teu rosto maravilha.
129 Novas cousas em vendo e estranho fato”. —
Ainda eu perguntei: — “Por onde trilha
O Flegetonte e o Letes? De um te calas,
132 E do outro a veia é dessa origem filha”. —
Tornou: — “Muito me agrada quanto falas;
Da água rubra o fervor, porém, solvera
135 Uma dessas questões, que me assinalas.
“Do inferno fora o Letes ver espera:
Na linfa sua as almas vão lavar-se
138 Depois que a penitência o perdão gera”. —
Disse depois: “É tempo de deixar-se
A selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela margem caminho há para andar-se.
142 Do fogo ali se extingue toda sanha”. —
32. Alexandre , alusão a uma aventura de Alexandre Magno. — 55. Cíclopes , gigantes com um só olho no meio da testa, que fabricavam armas para Júpiter. — 56. Mongibello , o vulcão Etna, na Sicília. — 63. Capaneu , um dos sete reis que sitiaram Tebas. — 79. Bulicame , fonte de água quente perto de Roma. — 101. Réia , mulher de Saturno e mãe de Júpiter. — 103-105. Velho de Creta , símbolo da humanidade e, segundo outros, da monarquia, que, em princípio boa e reta, vai depois degenerando.
Prosseguindo os Poetas, encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre estes está Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante. Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas com ele e foge para reunir-se a elas.
POR uma dessas margens empedradas
Imos: vapor do rio resguardava
3 Das chamas o álveo e as bordas elevadas.
Como do mar temendo a força brava
De Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
6 Os diques, com que o mal se desagrava;
Ou como o dano atalha, que lhe trazem
Do Brenta as invasões de Pádua a gente,
9 Se em Quiarentana os gelos se desfazem,
Assim as bordas desse rio horrente,
Posto altura e grossura lhes não desse
12 Iguais, quem quer que fosse artista ingente.
A selva já distante de nós era
Tanto, que eu divisá-la não podia,
15 Quando os olhos por vê-la atrás volvera,
Eis encontramos multidão sombria,
Que a margem costeava, nos olhando,
18 Como sói caminhante, ao fim do dia,
Que vai, por lua nova, outro encarando:
Para nos ver os cílios contraindo,
21 Qual a agulha o artesano aparelhando.
Assim, de mira à turba nós servindo,
Conhecido fui de um que me travava
24 Da roupa — “Ó maravilha!” — repetindo.
Quando o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe no rosto requeimado;
27 Posto que demudado, não vedava
Que de mim fosse nas feições lembrado.
À sua face inclinando a mão, lhe digo,
30 — “Messer Brunetto! vós aqui!” — torvado.
“Filho meu! complacente sê comigo!
Vir Brunetto Latini ora consente,
33 Deixando a turba, um pouco assim contigo!” —
Tornei: — “muito vos rogo; e que me assente
Convosco se quereis, prazendo ao guia
36 Dos passos meus, assentirei contente”. —
— “Se um momento um de nós” — me respondia —
Aqui parasse, imóvel anos cento,
39 Pelo fogo ferido jazeria.
“Caminha: que eu te irei no seguimento.
Depois hei de juntar-me à companhia
42 Dos que pranteiam no eternal tormento”. —
Eu da estrada a descer não me atrevia
Por ir com ele; mas a fronte inclino
45 Reverente; e, falando prosseguia.
— “Que fortuna” — me disse — “ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido?
48 De quem recebes na jornada ensino?”
— “Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre a terra na vida sossegada;
51 Num vale” — respondi — “fiquei perdido.
“Ontem costas lhe dei por madrugada;
Ele acudiu-me, quando atrás voltava,
54 E me conduz assim por esta estrada”. —
— “Se bem vaticinei, quando gozava,
Da vida bela, glorioso porto
57 Te há de o teu astro conduzir” — tornava.
“Se antes do tempo eu não stivesse morto.
Vendo que tanto o céu te era benigno,
60 Te dera nos trabalhos o conforto.
“Mas esse ingrato povo é tão maligno,
Que outrora de Fiesole viera
63 E tem de penha o coração ferino,
“Em ti, por seres bom, mal considera.
É justo: que entre acerbos sovereiros
66 Crescer doce figueira não se espera.
“Velha fama os diz cegos, sempre useiros
Na soberba, na inveja, na avareza.
69 Deles te esquiva; em vícios são vezeiros.
“Te guarda a sorte de honras tal grandeza,
Que hás de ser dos partidos cobiçado;
72 Mas das garras lhes fica longe a presa.
“Ceve em si própria o fiesolano gado
Os instintos brutais; não toque a planta,
75 Que inda haja em tal nateiro germinado,
“E em que a semente ressuscite santa
Dos romanos, que ali restaram, quando
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