“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
72 Comigo iníquo fui eu, que era justo.
“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
75 Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,
“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
78 Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —
O vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me “fala, se tu mais desejas
81 E pede-lhe: do tempo és apressado”. —
Tornei: “Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais convir-me; que eu sinto-me inibido
84 Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.
Ele então: “— Se o desejo teu cumprido
For por este homem, nobremente usando,
87 Te apraza, encarcerada alma, ao pedido
“Nosso atender, e como nos mostrando
Se liga ao tronco o esp’rito e se é factível
90 Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —
Soprou de rijo o lenho; e perceptível
Aquele som desta arte nos dizia:
93 — “Resposta breve dou quanto é possível.
“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
96 Ao círc’lo sete Minos logo a envia.
“Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
99 Aí, qual grão germina de centeio,
“Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
102 Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.
“Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
105 Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.
“Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
108 Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —
Ouvíamos ainda a sombra mesta,
De mais dizer cuidando houvesse o intento.
111 Eis sentimos rumor, que nos molesta.
Assim monteiro, à caça pouco atento,
Do javardo e dos cães ouve o estrupido
114 E das ramadas o estalar violento.
Súbito vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados,
117 Ramos rompendo ao bosque denegrido.
“Ó morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O segundo, que tardo se julgava:
120 “Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados
“De Toppo nas refregas te observava!”
Porém, de todo já perdido o alento,
123 Numa sarça acolheu-se que ali stava.
Corria, enchendo a selva, em seguimento
De famintas cadelas negro bando,
126 Quais alões da cadeia ao todo isento
A sombra homiziada se enviando,
A fez pedaços a matilha brava,
129 E logo após levou-os ululando.
Então meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me à sarça, que se em vão carpia
132 Pelas roturas, que o seu sangue lava.
“Ó Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia eu ser-te acaso amparo certo?
135 Em mim por crimes teus que culpa havia?” —
Disse-lhe o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
138 Por golpes tantos, de que estás coberto?” —
Tornou-lhe: “Ó alma que dessa arte falas
E tu que o dano vês, que me separa,
141 Da fronde minha, agora amontoá-las
“Dignai-vos junto à rama, que as brotara.
Na cidade nasci que por Batista
144 Deixou prisco patrão, que da arte amara
“Sempre pelos efeitos a contrista.
E se do Arno na ponte não restasse
147 Um vestígio, que traz seu culto à vista
“Talvez ela à existência não tornasse,
E quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a os esforços malograsse.
151 “Na minha própria casa hei-me enforcado”. —
58. Fui quem do coração de Frederico etc., Pedro des Vignes, secretário de Frederico II que se suicidou por ter sido acusado de trair o seu rei. — 118. Um clama etc., Lano de Siena, que morreu em Pieve del Toppo, na batalha entre Senenses e Aretinos. — 119. O segundo etc., Giacomo di S. Andrea, morto por Ezzelino de Romano. — 143. Por Batista etc., Florença, antes de tornar-se cidade protegida por S. João Batista, tinha como protetor Marte, do qual restava uma estátua sobre a ponte Vecchio.
O terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sanguíneo. Deste e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa.
DE amor do pátrio ninho comovido,
Essas dispersas folhas reunindo,
3 À sarça as dei, que tinha a voz perdido.
Ao limite, dali, fomos seguindo,
Em que parte o recinto co’ terceiro,
6 Onde a justiça horrível stá punindo.
Para expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu digo que à charneca então chegamos,
9 De plantas nua em seu espaço inteiro.
Da dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como o fosso a torneia sanguinoso:
12 Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.
O plaino era tão árido e arenoso,
Como o que de Catão os pés outrora
15 Na jornada calcaram fadigoso.
Ó vingança de Deus, quem não te adora
Nos tremendos efeitos meditando,
18 Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!
De almas nuas eu via infindo bando,
Por modos diferentes torturadas,
21 Miseráveis, mesquinhas pranteando.
Jaziam sobre o dorso umas deitadas,
Outras, dobrando os membros, se assentavam,
24 Muitas andavam sempre aceleradas.
Maior a turba destas se mostrava,
Menor a que, prostrada no tormento.
27 Maior dor nos lamentos denotava.
Largas flamas com tardo movimento
Choviam do areal em todo o espaço,
30 Qual neve em serra, quando é mudo o vento.
Na Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos cair viu Alexandre outrora,
33 No chão ardendo livres de embaraço.
Que aos pés no solo os calquem sem demora
Suas falanges avisado ordena:
36 Matá-los um por um fácil lhes fora.
Assim baixava, para agravo à pena,
Lume eterno que à areia se prendia,
39 Como à isca a fagulha mais pequena.
Cada qual sem repouso se estorcia,
A um lado e a outro os braços revolvendo
42 A cada chama, que do ar chovia.
“Mestre” — falei — “que vais tudo vencendo,
Somente exceto a legião furente,
45 Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,
“Diz quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao parecer, o incêndio, e não domado
48 Pela chuva, já rápido, insolente?” —
Reconhecendo o próprio condenado
Que da minha pergunta fora objeto,
51 “Morto sou qual fui vivo!” clama irado.
“Que Jove canse o armeiro seu dileto,
De quem tomou fremente o agudo raio
54 Para em mim saciar rancor abjeto;
“Que os seus cíclopes sintam já desmaio
De Mongibello na oficina negra,
57 Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —
“Como fez na peleja lá de Flegra;
Que me fulmine de ódio e sanha cheio:
60 No gozo da vingança em vão se alegra”. —
Virgílio então, com voz, como não creio
Lhe ter ouvido, sonorosa e forte,
63 Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio
“Não mitiga a soberda a própria morte,
Sofre mor pena; igual não há castigo
66 Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —
Para mim se voltou; com gesto amigo
Falou: — “Dos Reis que Tebas sitiaram
Читать дальше