— Não. Sublinhou-as bem, encarregando-me de que não as esquecesse por duas ou três vezes.
O semblante da jovem tornou-se cor de púrpura.
— Ajude-me, Alexey Fedorovitch. Agora, sim, agora é que eu necessito da sua ajuda. Vou dizer-lhe o que penso e dir-me-á depois se estou certa ou errada. Ora escute: se ele lhe tivesse pedido para me cumprimentar sem mais nem menos, sem repetir as palavras nem as acentuar, tudo estaria acabado; mas se insistiu e repetiu o recado para que não se esquecesse de me transmitir as próprias palavras é porque se encontrava agitado e talvez fora de si. Espantava-o a sua decisão e não se afastava de mim com passo firme, mas sim pulando loucamente. Esse recado enfático parece uma fanfarronada.
— Sim, sim — exclamou Aliocha, acalorado. — Estamos de perfeito acordo.
— Então nem tudo está perdido. Ainda o posso salvar. Ele não lhe falou de dinheiro? De três mil rublos?
— Sim, falou. É isso o que mais o atormenta. Diz que perdeu a honra e que nada lhe interessa — respondeu Aliocha, animando-se com a esperança de encontrar ainda um caminho de salvação. — Mas sabeis o que aconteceu ao dinheiro? — acrescentou, voltando ao desalento.
— Sei há bastante tempo. Telegrafei para Moscovo e sei que não o receberam. Não o enviou, mas eu não disse nada. Há alguns dias inteirei-me de que necessitava de dinheiro. O que eu pretendo é que saiba a quem deve recorrer, como ao seu melhor amigo. Mas não, não quer reconhecer-me como amiga verdadeira e empenha-se em considerar-me apenas como mulher. Passei uma semana de tormentos refletindo no que poderei fazer para que me olhe sem se envergonhar de si mesmo ou de quem esteja no segredo, mas para mim... A Deus tudo pode confessar sem corar. Não compreende quanto tenho sofrido por ele? Como, como não me conhece? E como pode não me conhecer depois do que se passou? Mas quero salvá-lo. Que não me considere sua noiva! Bem! Mas que tema apresentar-se desonrado aos meus olhos!... Se lhe abriu o coração sem qualquer temor, Alexey Fedorovitch, por que não merecerei eu o mesmo?
A voz tremia-lhe e algumas lágrimas correram-lhe pelo rosto.
— Tenho de lhe contar — disse Aliocha com voz trémula. — Tenho de lhe contar o que aconteceu entre ele e o nosso pai.
E referiu tudo: como o havia mandado pedir dinheiro, a sua chegada, como atacara o pai e o estranho modo como voltara a incumbi-lo de o despedir dela.
— Foi para casa dessa mulher — acabou Aliocha por fim, debilmente.
— E julgais que não posso suportá-la? E ele o mesmo, hem? Pois não casará com ela, não! — E desatou a rir, com os nervos tensos. — Um Karamazov será capaz, por acaso, de sentir uma paixão eterna? Sim, porque ele sente paixão e não amor. Não casará, não. Ela não o quer.
— Quem sabe? Talvez dependa dele — disse o noviço, baixando os olhos com tristeza.
— Pois digo-lhe que não. Essa moça é um anjo, sabia? — exclamou Catalina com extraordinária vivacidade. — É o ser mais fantástico de todos. Sei bem quanto é sedutora, mas também como é boa, reta e nobre. De que se admira, Alexey Fedorovitch? Crê que exagero ou que não digo a verdade? Agrafena Alexandrovna, meu anjo! — gritou de repente, voltando-se para a porta em que alguém esperava. — Vem cá. É um amigo meu. É Aliocha, que está ao corrente de tudo. Vem para que te veja.
— Esperava só que me chamasses — respondeu uma voz de mulher em tom doce.
E Gruchenka apareceu, radiante, dirigindo-se à mesa. Aliocha sentiu que o coração lhe caía aos pés. Os olhos ficaram presos naquela mulher terrível, naquela «má rés», como Ivan acabara de lhe chamar. De momento, sugeria a ideia de um ser simples e bondoso, de uma criatura doce e encantadora, mas semelhante a tantas mulheres de formosura vulgar. Certo que era de agradável presença e fiel modelo dessa beleza russa perante quem tantos homens suspiram de amor. Alta, sem contudo alcançar a majestosa altura da sua companheira; forte, de movimentos leves, mansos, brandos, dotados de certa graça, como a tonalidade da voz. Aproximou-se com um passo silencioso, cadenciado, firme e decidido que contrastava com o de Catalina e sentou-se numa cadeira com delicados barulhos de seda preta, os do seu vestido. Um xaile de caxemira, branco, aconchegava-lhe o pescoço e as costas. Tinha vinte e dois anos e não aparentava mais nem menos. A pele era branquíssima, com um leve tom rosado nas faces. No oval do rosto, pouco pronunciado, apenas a maxila inferior era um pouco proeminente; o lábio superior, muito delgado, contrastava com o outro, que parecia inchado. A cabeleira, opulenta e magnífica, castanha, as sobrancelhas negras e os olhos feiticeiros, de um azul acinzentado, com longas pestanas, ficavam na memória de qualquer um que, ao cruzar-se com ela entre o público e a rua, parasse um pouco a contemplá-la. Aliocha apreciou singularmente o ar de candura infantil que adornava aquele rosto. O olhar era inocente e alegre como o de uma criança e, como tal, curiosa e impaciente por receber uma guloseima, acercou-se da mesa. A luz dos seus olhos alegrava a alma, pensou Aliocha. Possuía outro encanto que o jovem não compreendia ou não sabia definir, ou ainda que o afetava apenas de modo inconsciente. Era aquela brandura, aquela voluptuosa flexibilidade, a ondulação felina do seu corpo robusto e cheio. Sob o xaile moldavam-se as costas amplas e maciças e os seios eram túrgidos de fêmea nova. Toda ela sugeria as linhas da Vénus de Milo, proporcionadamente exageradas. Os entusiastas das beldades russas prediriam que aquela formosura, tão fresca e juvenil, perderia a sua harmonia aos trinta anos ao engordar; o rosto intumescer-se-ia, aparecendo rugas na testa e «pés de galinha» nos olhos. A complexão sanguínea dilatar-se-ia no pior dos aspetos e seria, numa palavra, uma beleza efémera, essa beleza prematura tão comum entre as mulheres russas. Aliocha não deu atenção a isso, pois ainda estava fascinado, e não deixou de observar com pena e certo desencantamento aquela languidez e pobreza de linguagem. Ela devia pensar que seria de bom tom usar uma afetada cadência de canção, péssimo costume que revela pouca educação e uma falsa ideia do bom gosto. Aliocha não podia conciliar esta ausência de naturalidade com a expressão de felicidade pueril daquelas feições e a alegria de boneca que brilhava nos olhos doces. Catalina Ivanovna havia-a feito sentar frente a ele e beijava-a repetidamente nos lábios.
— É a primeira vez que nos vemos, Alexey Fedorovitch — disse. — Desejava conhecê-la, vê-la apenas. Quis ir a sua casa, mas tão cedo soube do meu desejo, veio ela. Arranjaremos tudo entre as duas. Diz-mo o coração. Pediram-me que não desse este passo, mas eu pressentia que não haveria tropeços e estava no caminho certo. Gruchenka explicou-me tudo, até mesmo o que pensais fazer. É um anjo de bondade que nos traz a paz e a alegria.
— E não me haveis menosprezado, minha doce e excelente senhora — cantou Gruchenka sem deixar o seu adorável sorriso.
— Não me fales assim, feiticeira. Minha bruxazita! Menosprezar-te, eu! Pois hei de beijar-te outra vez nos lábios, esse que parece um pouco inchado precisa de ficar mais, muito mais. Olha como ri, Alexey Fedorovitch! Depois de ver este anjo até nos sentimos bons.
O jovem corou de vergonha, agitado de um leve tremor.
— É demasiado boa, senhora, e talvez não mereça tanto carinho.
— Não merece? Não merece tanto carinho? — gritou Catalina Ivanovna com a mesma exaltação. — Pois digo-lhe, Alexey Fedorovitch, que somos caprichosas, indomáveis, mas melhores do que a crosta do pão. Somos nobres e generosas, permita que o diga. Infelizmente, a desgraça aninhou-se no nosso coração e estamos dispostas a sacrificar-nos por um homem indigno ou talvez volúvel. Um oficial a quem amámos e por quem tudo sacrificámos desde há uns cinco anos esqueceu-nos, abandonando-nos para se casar. Agora é viúvo, escreveu-nos, esperamo-lo de um dia para o outro. E sabia? É o único homem a quem amámos e amaremos toda a vida! Voltará e Gruchenka será de novo feliz, esquecendo estes cinco anos de tristeza. Quem pode recriminar a sua conduta? Quem pode gabar-se de haver obtido os seus favores? Esse carunchoso traficante, que é mais pai, amigo e protetor? Ah! Encontrou-a desesperada de angústia pelo abandono do seu amado. A ponto de afogar-se... e foi esse velho comerciante que a salvou.
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