— Já sabia que pararia sozinho.
— Mentes. Procedeste com perfídia, com toda a tua perfídia. Desprezas-me. Vieste desprezar-me na minha própria casa!
— Pois bem, vou-me já embora. O pai bebeu demasiado.
— Pedi-te pelas chagas de Cristo que fosses a Tchermachnya por dois dias e não foste.
— Irei amanhã, se o empenho é tanto.
— Não irás. O que tu queres é vigiar-me, malvado. Por que não vais?
O velho obstinava-se, chegado a este estado de embriaguez em que o homem, inofensivo até ali, busca agora disputas para manter com teimosia uma ideia qualquer.
— Por que me olhas? Por que me olhas desse modo? Os teus olhos estão a dizer-me: «Bêbedo horrível!» Há deslealdade e orgulho nos teus olhos... Vieste com desígnios ocultos. Aliocha, olha-me francamente. Aliocha não me despreza. Aliocha, não gostes de Ivan.
— Não se irrite contra o meu irmão e deixe já de o atacar — interrompeu o noviço com firmeza.
— Bom, acabou-se. Uf! Dói-me a cabeça. Afasta essa garrafa, Ivan, já to disse três vezes.
Ficou em atitude desconfiada e uma careta azedou-lhe o rosto.
— Não te enfades com um velho, Ivan. Já sei que não gostas de mim, mas não te enfades. Também não tens razões para gostar, essa é que é a verdade... Vai a Tchermachnya. Irei buscar-te e dar-te-ei um presente. Apresento-te a uma moça que conheci lá. Anda descalça, mas não desdenhes das moças que andam assim... pois são como pérolas! — E beijou com ruído glutão as pontas dos dedos. — Na minha opinião — continuou com vivacidade surpreendente, como que serenado pelo seu tema favorito — na minha opinião... Ah, rapazes! Na minha opinião!... Eu, durante toda a minha vida, só encontrei uma mulher feia. O meu lema é... podereis compreendê-lo? Oh, mas como poderes entender estas coisas se tendes orchata em vez de sangue nas veias? E ainda não rompestes a casca de ovo? O meu lema é que cada mulher possui um encanto diabólico que não têm as outras! A questão é saber encontrá-lo. É necessário talento! Na minha opinião não há mulheres feias. Só o facto de ser mulher já vale muito... mas que sabeis vós? Ainda nas vieilles filles, nas solteironas, se descobrem qualidades que vos fazem admirar a estupidez dos homens que as deixaram envelhecer sem lhes tirar o proveito. As maltrapilhas ou pouco atrativas, há que conhecê-las de surpresa. Não o sabíeis? É preciso assombrá-las até que fiquem fascinadas, transtornadas, envergonhadas de que todo um senhor se tenha prendido de uma pessoa vil. É muito divertido que haja sempre amos e escravos neste mundo, porque desse modo existirão sempre donzelas que se prestarão a todos os caprichos do seu senhor, e já sabeis que não faz falta outra coisa para a felicidade. Cala-te... Repara, Aliocha. Também acontecia deixar a tua mãe surpreendida, mas de maneira diferente. Não me importava com ela, nem muito nem pouco, mas quando a ocasião se apresentava era um autêntico devoto. Deitava-me a seus pés e beijava-os, e sempre, recordo-me como se fosse hoje, conseguia arrancar-lhe aquelas gargalhadas cristalinas, pacíficas, nervosas e tão peculiares. Já sabia que os seus ataques começavam assim, que no dia seguinte teríamos chiliques de histerismo e que aquela hilaridade não era uma expressão de alegria. No entanto, imitava-a muito bem. É importante saber onde cada uma tem cócegas. Um dia, Beliabski, que andava sempre agarrado a ela, esbofeteou-me na sua presença. Oh, que doce cordeirinho! Como se pôs do meu lado! Eu que julgava que iria também ajudar aos golpes! «Tentavas vender-me», dizia. «Como ousa maltratar-te na minha presença?», gritava. «Que não volte a pôr os pés nesta casa! Nunca! Corre e provoca-o para um duelo!» Tive que levá-la ao mosteiro para que acalmasse. Os bons padres conseguiram-lhe a razão com as suas orações. Mas juro por Deus, Aliocha, que nunca insultei a pobre louca. Talvez, por acaso, no primeiro ano do nosso casamento, porque estava sempre rezando, e nas festas de Nossa Senhora até me proibia de entrar no seu quarto de dormir. Propus-me arrancá-la daquele misticismo e um dia disse-lhe: «Olha, vês este santo perante o qual te ajoelhas? Fora com ele! Despedaço-o! Tu julga-lo milagroso, mas eu cuspo-lhe em cima e nada me acontece...» Deus! Quando viu aquilo, pensava que me iria matar, mas não. Levantou-se sobressaltada, torceu as mãos e, ocultando nelas o rosto, começou a tremer dos pés à cabeça e caiu sem sentidos... como uma boneca de trapos. Aliocha! Aliocha! Que tens?
O velho levantou-se, assustado. Desde que começara a falar da mulher o semblante de Aliocha principiara a desfigurar-se. Muito corado, de olhos fulgurantes, um tremor agitava-lhe os lábios. O velho bêbedo, na sua conversa insensata, não se apercebeu de nada até que se repetiu no filho o que estava a descrever acerca da mãe. Aliocha levantara-se, retorcera as mãos, ocultara com elas o rosto e caiu, com um paroxismo violento, agitado de convulsões, soluçando de histerismo. A extraordinária semelhança com o que acabava de recordar impressionou terrivelmente o velho.
— Ivan! Ivan! Corre, traz água! Está como ela, exatamente como ela! Deita-lhe um pouco de água na boca, como eu fiz com ela. Caiu como a mãe, como a mãe...
— A mãe dele e a minha! Ou não seria também minha mãe? — disse Ivan com manifesta ira e desprezo.
O velho estremeceu perante o olhar faiscante de Ivan. E aconteceu uma coisa esquisita que apenas durou um momento, um momento durante o qual o velho bêbedo não conseguiu recordar que a mãe de Aliocha era também a de Ivan.
— Tua mãe? — murmurou sem compreender. — Que queres dizer? De que mãe falas? Dela?... Mas que diabo! É verdade! É claro que era a tua também! Diabo! Nunca tive a cabeça tão confusa! Perdão, devia estar a pensar... Ah! ah! — Calou-se e uma careta de ébrio, grotesca, transformou-lhe o rosto por completo.
Naquele instante ouviu-se um ruído espantoso vindo do vestíbulo. Ouviram-se gritos violentos e furiosas imprecações. Abriu-se a porta e Dmitri entrou com ímpeto no salão. O velho, aterrado, precipitou-se para o lado de Ivan.
— Vai-me matar! Vai-me matar! Não deixes que se aproxime! — uivava, agarrando-se às abas da casaca do filho.
Por detrás de Dmitri apareceram Grigory e Smerdyakov, que haviam lutado em vão para lhe cortar a entrada, fiéis às ordens recebidas dias antes. Como um raio e valendo-se de um momento de hesitação de Dmitri, Grigory lançou-se para o lado oposto da sala e, depois de fechar a porta que dava para as habitações interiores, ficou diante dela de braços cruzados, disposto a defendê-la «até à última gota de sangue». Dmitri, prevenido por esta manobra, bramou mais do que disse:
— Ah! Então está aí! Está aí escondida, não é? Afasta-te, velhaco!
Tratou de empurrar o criado, mas este repeliu a acometida com um encontrão. Louco de furor, Dmitri atirou-se contra Grigory, batendo-lhe com toda a sua alma. O velho caiu como um saco e o outro passou-lhe por cima, desaparecendo no quarto.
Smerdyakov, pálido e trémulo, apoiava-se ao lado de Fedor Pavlovitch.
Dmitri gritava:
— Está aqui! Vi-a entrar agora mesmo, mas não pude alcançá-la. Onde se meteu? Onde se meteu ela?
Todo o medo de Fedor Pavlovitch se desvaneceu ao ouvir semelhante notícia.
— Apanhai-o! Prendei-o! — E correu em perseguição do seu rival enquanto Grigory se levantava meio tonto e Ivan e Aliocha se precipitavam atrás do pai.
Na terceira sala ouviu-se a queda de um objeto, seguido de estilhaços de louça. Era um jarrão de pouco valor, com o seu pedestal, em que Dmitri tropeçara ao passar.
— A ele! Socorro! — vociferava o velho.
Ivan e Aliocha alcançaram-no, obrigando-o a voltar ao salão.
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