— Nada. Sofre porque o tenho em boa opinião. É um lacaio e um espírito servil; o melhor combustível para a revolução, quando a hora chegar.
— Para a revolução?
— Fazem falta outros homens, já sei. Mas esses também servem. Esses são os primeiros e preparam o posto aos que vêm a seguir.
— Quando será isso?
— há de disparar-se um foguete para que apite. Os camponeses não gostam muito de escutar esses cozinheiros.
— Mas uma burra de Balaão como essa, fala e fala, e sabe o diabo aonde irá parar.
— Tem feito um bom aprovisionamento de ideias — disse Ivan, sorrindo abertamente.
— Pois aviso-te que não pode suportar-me; nem a mim nem a ninguém. Apesar do alto conceito que tem de ti, despreza-te, e também a Aliocha. No entanto, não rouba, o que é uma grande coisa. Não gosta de intrigas, sabe fechar a boca e não anda por aí com as nossas roupas. Além do mais faz uns pastéis de peixe deliciosos. Mas que vá para o diabo; não vale a pena falarmos tanto dele!
— Claro!
— Quanto às ideias que possa ter, digo-te que, em geral, o aldeão nisso necessita mais de pancada do que de ideias. Tal foi sempre a minha opinião. Os nossos camponeses são uns velhacos ladinos que não fazem caso algum de piedade e, em troca, aproveitam bem uns açoites. A Rússia é rica em vimes, mas se os bosques se destroem, está perdida. Eu tiro o chapéu perante um homem douto. Deixámos de açoitar os camponeses porque nos julgamos muito adiantados, mas eles açoitam-se a si mesmos. Ainda há outra coisa: «Na mesma medida com que medirdes sereis medidos», ou lá como é, porque de qualquer modo teremos de o ser. Que a Rússia é toda uma imundície! Se soubesses, querido, como a detesto! Quero dizer, à Rússia não, aos seus vícios... Tout cela c’est de la cochonnerie... Sabes do que gosto? Do engenho.
— Ainda outro copo? Já basta!
— Espera um pouco. Beberei outro e outro e nada mais. Mas calai-vos, não me interrompais. Em Mokroe falei com um velho que me dizia: «Nada nos causa mais prazer do que condenar as moças a serem açoitadas, tarefa de que encarregamos os rapazes. E sucede que o moço pede quase sempre a mão da jovem a quem no dia anterior açoitou. É uma vantagem para elas», disse. «É um meio de saciar os nossos instintos sádicos, mas mais do que tudo é isto feito com engenho.» «Havemos de presenciá-lo, hem?», respondi-lhe. Aliocha, estás a corar! Não sejas tímido, criatura. Sinto não ter almoçado com o teu Superior e haver falado aos monges nas moças de Mokroe. Aliocha, não me guardes rancor por esta manhã ter ofendido o Superior. É o meu caráter que me perde. Se há Deus, se existe, sou culpado e dar-lhe-ei contas de tudo. Mas se não há Deus, não é verdade que merecem isso e muito mais, os padres? Nem cortando-lhes a cabeça pagariam, porque detêm o progresso. Queres crer, Ivan, que isto me atormenta? Ah, leio nos teus olhos que não me crês! Tu acreditas no que dizem por aí; que não sou mais do que um bobo... Tu também não vês em mim outra coisa?
— Não, não vos tenho como tal.
— Julgo que dizes a verdade. Tu olhas francamente e falas com sinceridade. Ivan não. Ivan é orgulhoso... Eu acabaria com os vossos monges, apesar de ser o mesmo. Colheria toda esta caterva de rústicos e suprimi-la-ia da face da Rússia para fazer entrar os loucos na razão. Então nadaríamos em ouro e prata...
— E para que os suprimiria? — perguntou Ivan.
— A fim de que a verdade prevalecesse. É isso.
— Se a verdade prevalece, o pai será o primeiro despojado e suprimido.
— Ah! Pois quase tendes razão. Sou um burro! — saltou Fedor Pavlovitch, batendo na testa. — Pois bem, se assim é, que fique em paz o teu mosteiro, Aliocha, e nós, homens de gênio, gozemos a tranquilidade esvaziando garrafas. Já vês, Ivan, que o mesmo Omnipotente arranjou as coisas deste modo. Diz, Ivan, existe Deus ou não? Espera, diz a verdade, fala com formalidade. De que te ris?
— Do seu engenho em estar a observar a crença de Smerdyakov na existência de dois santos que podem remover montanhas.
— Porquê? Achas que me pareço com ele neste momento?
— Muito.
— Melhor. Isso prova que sou um russo de boa cepa. Tu também serás colhido em renúncia da mesma maneira, por filósofo que te arvores. Por que te apanho?... Que apostas a que amanhã te apanho? Não importa, fala. Há Deus ou não? Mas formal, hem? Necessito que sejas formal.
— Não, não há Deus.
— Aliocha, há Deus?
— Sim.
— E a imortalidade, Ivan? Existe a imortalidade? Por pouca, por pequena que seja?
— Não há imortalidade.
— De nenhum modo?
— De nenhum modo.
— Então existiria o nada absoluto. Mas acaso não haverá algo? Algo é melhor do que nada!
— Nada é absoluto.
— Existe a imortalidade, Aliocha?
— Sim, existe.
— Deus e a imortalidade?
— Deus e a imortalidade. A imortalidade está n’ Ele.
— E pensar que o homem gastou tão mal tanta fé, tantas energias por nada, por uma quimera, durante tantos séculos... Quem troça assim do homem? Ivan, pela última vez e para sempre. Há Deus, ou não? Pergunto-o pela última vez.
— Pois pela última vez, não.
— Quem se ri da humanidade, Ivan?
— O diabo, talvez. — E Ivan deu uma gargalhada.
— Mas existe, o diabo?
— Não, também não há diabo.
— É pena. Mal haja o primeiro homem que inventou Deus. Não sei que lhe faria! Pendurá-lo pelos pés numa árvore seria para ele uma carícia.
— Se não tivesse inventado Deus não haveria agora civilização.
— Não existiria sem Deus?
— Não. Nem aguardente, esta aguardente que devo tirar-lhe da frente.
— Espera, espera, espera, querido filho. Só mais um copinho. Ofendi os sentimentos de Aliocha. Não estás zangado comigo, Alexey?
— Não me zango. Conheço-o. Tem o coração melhor do que a cabeça.
— O coração melhor do que a cabeça, não é? Ah, Senhor! E é ele quem o diz! Ivan, gostas de Aliocha?
— Sim.
— Tens de gostar — retorquiu o pai, perdido de bêbado. — Ouve, Aliocha, esta manhã portei-me com grosseria para com o teu diretor. Estava muito excitado. Mas tem talento, esse Presbítero, não te parece, Ivan?
— É possível.
— Sim, sim, tem. Il y a du Piron lá dedans. É um jesuíta russo. Como é um cavalheiro, sente uma profunda indignação ao ver-se obrigado a representar o papel de santo.
— Mas crê em Deus.
— Nem pisca. Não sabes o que diz a toda a gente? Vamos lá, a toda a gente não, aos homens de talento que o vão ver. Não há muito, disse textualmente ao governador Schultz: «Creio, mas não sei em quê.»
— É verdade?
— É, pois. Mas eu aprecio-o. Há nele algo de Mefistófeles, ou melhor, do Herói do dia... Arbenin ou lá como se chama... É um sensual, já vês. Tão voluptuoso que não estaria tranquilo se minha filha ou minha mulher se lhe confessassem. Se o ouvisses quando começa a contar coisas... Há três anos convidou-nos para tomar chá com licores, dos que lhe enviam as senhoras, e contou então a sua vida passada... Bom, quase rebentámos de riso... Especialmente ao ouvir-lhe como curou uma paralítica. «Se as minhas pernas quisessem sustentar-me», disse-nos, «ensinar-lhes-ia uma dança». Que tal? «A que eu costumava dançar nos meus tempos!», continuou. Do comerciante Demidov ficaram lá, uma vez, sessenta mil rublos!
— Como? Roubou-os?
— O outro confiou-lhos como a um homem honrado, dizendo: «Guarda-me isto, amigo, pois que vão fazer um registo na minha casa.» Ele guardou-os. «Deste-os à Igreja», declarou logo. O outro respondeu-lhe: «És um canalha.» «Não», replicou, «não sou canalha, sou é esperto.» Mas não era ele, o Presbítero nada tem a ver com isto. Estou a fazer confusão. Anda, bebe outro copo e pronto. Tira-me a garrafa, Ivan. Estou a falar sem tino. Por que não me fazes parar? Por que me deixas mentir?
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