— Por que razão o persegue? Matá-lo-á como o lobo ao cão — gritou Ivan, colérico.
— Ivan! Aliocha! Meus filhos! Está na minha casa! Gruchenka está aqui! Ele diz que a viu entrar!
Falava sem alento. Não a esperava tão cedo e só a ideia de a ter em casa transtornava-o por completo, fazendo-o tremer da cabeça aos pés num transporte de delírio.
— Já se vê que não está! — gritou Ivan.
— Pode ter entrado pela outra porta.
— Está fechada e a chave está consigo.
— Apanhai-o! — gritou Fedor Pavlovitch de repente, vendo Dmitri que reaparecia no salão.
Encontrara de facto fechada a outra porta e as janelas de todos os quartos, de modo que Gruchenka não podia ter entrado nem escapado por lado algum.
— Apanhai-o! — repetiu o velho. — Roubou-me dinheiro da alcova! — E soltando-se de Ivan, lançou-se contra Dmitri.
Mas este recebeu-o com as mãos levantadas, agarrou-o pelas duas mechas de cabelo que lhe restavam nas fontes, sacudiu-o a seu gosto e atirou-o ao chão como um objeto desprezível. Depois deu-lhe dois ou três pontapés em pleno rosto, e não foram mais porque Ivan, menos forte do que o irmão, o abraçou por detrás e o apartou, ajudado por Aliocha, que o empurrava pela frente com as suas poucas forças.
— Louco! — gritou Ivan. — Mataste-o!
— Pois bom proveito lhe faça! — respondeu o outro sem alento. — Se o não matei agora, será depois. E podeis vir em sua ajuda!...
— Dmitri! Vai-te embora! — ordenou Aliocha imperiosamente.
— Alexey! Diz-me, estava aqui? Só em ti confio, como sabes. Eu próprio a vi deslizando sob as sebes, nesta direção. Chamei-a e fugiu.
— Juro-te que aqui não esteve; e ninguém a esperava.
— Mas eu vi-a... Decerto que terá... hei de encontrá-la, seja como for... Adeus, Alexey... Nem uma palavra a Esopo acerca do dinheiro, por agora. Vai já a casa de Catalina e não te esqueças de dizer-lhe que lhe mando as minhas respeitosas saudações! Nada mais que saudações e boa viagem. Descreve-lhe esta cena.
Entretanto, Ivan e Grigory levantavam o velho e acomodavam-no numa cadeira. O rosto estava ensanguentado, mas não perdera os sentidos e escutava ansiosamente o que Dmitri gritava. Ainda acreditava que Gruchenka se escondia nalgum canto da casa. Dmitri lançou-lhe um olhar de ódio e disse rancorosamente:
— Não me arrependo de haver derramado o teu sangue! Fica com as tuas ilusões, velho! Fica com elas porque eu também tenho as minhas. Maldito sejas! Renego-te!
E saiu a correr.
— Está aqui! De certeza que está aqui! Smerdyakov! Smerdyakov! — balbuciou Fedor Pavlovitch, arquejando e fazendo sinais com a mão.
— Não está não, velho lunático! — repreendeu Ivan, exasperado. — Bonito! Agora desmaia! Água! Uma toalha! Depressa, Smerdyakov!
Smerdyakov foi buscar a água. Despiram o ferido e deitaram-no, deixando-lhe uma toalha molhada na cabeça como se fosse um turbante. Extenuado pela embriaguez, pela emoção violenta e pelas feridas, fechou os olhos e adormeceu logo que se encostou à almofada. Ivan e Aliocha voltaram ao salão e Smerdyakov apanhou os cacos do jarrão enquanto Grigory, junto da mesa, olhava o chão sombriamente.
— Fazia-te bem uma compressa de água fria na cabeça, e seria melhor deitares-te — aconselhou Aliocha. — Nós trataremos de meu pai. Dmitri fez-te um grande golpe.
— Injuriou-me! — lamentou-se Grigory com voz lúgubre. — Dei-lhe banho tantas vezes... e injuriou-me! — repetia o pobre velho.
— Vai para o diabo! A ele, se não lho tiro das mãos, matava-o. Pouco bastaria para acabar com Esopo, não te parece, Aliocha? — continuou Ivan em voz baixa.
— Que Deus o defenda!
— Por que há de defender? — perguntou Ivan no mesmo tom, com um gesto maligno. — Um réptil devora outro réptil, e está muito bem.
Aliocha estremeceu.
— Pela minha parte, farei o que puder para evitar um crime, assim como evitei agora. Fica aqui, Aliocha. Vou dar uma volta pelo pátio. Tenho a cabeça a arder.
Aliocha entrou no quarto do pai e ficou sentado à cabeceira da cama durante quase uma hora. De repente, o velho abriu os olhos e ficou a contemplá-lo em silêncio, como que fazendo grande esforço de memória. Em seguida, mostrando enorme excitação no rosto, murmurou a medo:
— Aliocha, onde está Ivan?
— No pátio. Dói-lhe a cabeça. Está a vigiar.
— Dá-me esse espelho. Esse aí de cima... Dá-mo... Dá-mo cá...
Aliocha entregou-lhe um espelho de mão que se encontrava sobre a consola e o velho contemplou-se nele. O nariz estava muito inchado e do lado esquerdo da testa ressaltava a congestão avermelhada de uma contusão.
— Que disse Ivan? Aliocha, querido, meu único filho, tenho medo de Ivan. Tenho mais medo dele do que do outro. Tu és o único que não me espanta...
— Nada tema de Ivan. Está zangado, mas defende-o.
— E o outro, Aliocha? Voou para casa de Gruchenka, não foi? Diz-me a verdade, meu anjo. Ela esteve aqui há pouco?
— Ninguém a viu. Foi um engano. Nunca aqui esteve.
— Sabes uma coisa? Mitya quer casar com ela!
— Mas ela não quer.
— Não quer, não quer. Não quer por nada deste mundo!
O velho exaltou-se de gozo e, como se nada pudesse ouvir de mais agradável, pegou na mão de Aliocha e apertou-a contra o peito. Nos seus olhos algumas lágrimas tremiam.
— A imagem da Mãe de Deus de que eu falava, lembras-te? Dou-ta, podes levá-la. Podes voltar ao mosteiro... Esta manhã brincava, não estejas zangado. Dói-me a cabeça, Aliocha, tranquiliza-me. Sê o meu anjo da guarda e diz-me a verdade.
— Ainda pensa que ela esteve aqui? — perguntou o jovem pesaroso.
— Não, não. Acredito no que me dizes. Olha, vai a casa de Gruchenka ou procura-a aonde quer que esteja. Vai depressa e fala com ela; procura saber por ti mesmo a quem dos dois prefere: a ele ou a mim. Que tal? Achas que o poderás fazer?
— Se a vir, pergunto-lhe — murmurou Aliocha atordoadamente.
— Não, ela nunca to diria. É uma raposa. Começará a beijar-te, dizendo que gosta é de ti. É uma falsa, uma sem-vergonha. Não deves lá ir! Não, não vás!
— Não, pai. Além disso não seria de todo conveniente, não ficaria bem.
— Aonde te mandava ele quando gritou «Vai!»?
— A casa de Catalina Ivanovna.
— Para lhe pedir dinheiro?
— Não.
— Pois ele não tem nem um cêntimo. Esta noite refletirei e hei de determinar alguma coisa. Podes ir-te embora... Talvez a encontres... Mas não deixes de vir amanhã de manhã sem falta. Terei que dizer-te algo. Virás?
— Sim, virei.
— Quando entrares, faz de conta que só vens saber de mim. Não digas a ninguém o que te disse. Nem uma palavra a Ivan.
— Muito bem.
— Adeus, meu filho. Nunca esquecerei que me defendeste. Amanhã dir-te-ei algo... mas tenho que pensar.
— Como se sente agora?
— Amanhã levanto-me e poderei sair, já completamente bom.
Ao atravessar o pátio, Aliocha viu Ivan que, sentado num banco perto da porta, escrevia num caderno. Contou-lhe que o pai despertara restabelecido e que lhe permitira ir dormir ao mosteiro.
— Aliocha, gostava muito que nos víssemos amanhã de manhã — disse Ivan, levantando-se. Fê-lo tão afetuosamente que o irmão ficou surpreendido.
— Amanhã tenho de ir a casa das Hohlakov e talvez à de Catalina Ivanovna, se não a encontrar hoje.
— Ah! Então vais agora? Por conta dos «respeitosos respeitos», hem?
Ivan falava com lentidão e Aliocha ficou desconcertado.
— Creio ter compreendido as exclamações de Dmitri e algo das frases que te disse antes. Roga-te que vás vê-la e que lhe digas que ele... enfim... que o dê por despedido.
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