— Defende-me com grande valentia, minha querida. Arranja tudo em grande velocidade — anotou Gruchenka com a sua languidez de sempre.
— Defender-te! Por que hei de defender-te? Como ousaria fazê-lo? Gruchenka, meu anjo, dá-me a tua mão. Veja, Alexey, como é suave e delicada. Olhe! Foi ela que me devolveu a felicidade, foi ela que me ressuscitou. Vou comê-la com beijos. Assim, assim!
E beijou três vezes com entusiasmo aquela mão encantadora, com efeito, ainda que um tanto gorducha. Gruchenka acompanhava esta adoração com um risinho nervoso e sonoro, observando a outra e visivelmente agradada.
«Para quê tal arrebato, Senhor!». pensou, corando, Aliocha, a quem incomodava de certo modo aquela cena.
— Não conseguirá envergonhar-me, beijando-me assim em frente de Alexey Fedorovitch, querida senhora.
— Pensas que o desejo? — perguntou a outra, surpreendida. — Ah, querida, conheces-me tão mal!
— Também a mim me não conhece bem. Talvez não seja tão boa como lhe pareço. Tenho um mau coração e faço o que me apetece. Seduzi Dmitri apenas para brincar com ele.
— Mas agora hás de salvá-lo. Prometeste-mo. Vais explicar-lhe tudo e, para o desenganar, dizes que há anos que amas outro que te ofereceu agora a sua mão.
— Ah, não! Eu não prometi tal coisa. A senhora é que compôs toda essa história. Eu não prometi sequer uma palavra.
— Pois não te entendo! — disse Catalina em voz surda. — Prometeste...
— Ah, não, senhora angelical; eu nada prometi — interrompeu Gruchenka com o seu acento melado, sem mudar a alegre expressão do rosto. — Já vê, querida senhora, como sou perversa comparada consigo. Não obedeço a mais nada do que aos meus caprichos. É possível que acabe por lhe prometer alguma coisa, mas neste momento penso que Mitya pode ainda vir a estar-me agradecido. Amei-o muito, uma vez... amei-o quase durante uma hora. E é possível que agora lhe vá dizer que venha viver comigo para sempre. Repare como sou versátil!
— Mas se ainda há um momento dizias... o contrário — murmurou Catalina Ivanovna com desalento.
— Há um momento! Pois se soubesse como sou fraca e ignorante! Pense quanto sofreu por mim. Que hei de fazer se, quando chegar a casa, me deixar tomar de piedade por ele?
— Não esperava...
— Ah, senhora! Quanto melhor é do que eu e quanto mais nobre! E agora que me conhece, talvez não faça caso desta imbecil. Dê-me a sua linda mãozinha, criatura angelical — disse com ternura, apoderando-se da mão de Catalina. — Sim, querida, quero beijá-la como beijou a minha. Beijou-a três vezes, mas eu devo fazê-lo trezentas para ficar em paz. Pois bem, deixemos isso e seja o que Deus quiser. Talvez mude de ideia e me submeta às suas ordens, como uma escrava. Deixemos que se cumpra a vontade de Deus sem nos metermos em promessas nem recompensas. Que mão tão fina! Que mão tão fina tem, minha doce amiga! É de uma formosura incomparável!
Lentamente, ia levando a mão aos lábios com o propósito de nela depositar os beijos prometidos.
Catalina Ivanovna não opunha resistência e escutou, medrosamente espantada, as últimas palavras relativas à possível submissão servil de Gruchenka, pois que ainda que esta as pronunciasse de maneira estranha, os olhos revelavam sempre a mesma inocência, serena e confiada, a mesma serena alegria. Tanto que, olhando-os fixamente, pensou Catalina, animada de um raio de esperança: «Será possível que esta criatura não seja uma ingénua?»
Gruchenka, que parecia maravilhar-se com aquela «linda mãozinha», aproximou-a mais ainda dos seus lábios, manteve-a ao alto durante algum tempo, como que meditando e, de repente, disse com voz mais branda e melíflua do que nunca:
— Sabeis, querida senhora, sabeis que, ao fim e ao cabo, não penso beijar-vos a mão? — E deu uma risada aguda e jubilosa.
— Como queiras! Que te aconteceu? — perguntou Catalina, estremecendo.
— Isto fá-la-á recordar que me beijou a mão e que eu não beijei a sua — respondeu a outra, olhando-a fixamente de olhos fulgurantes.
— Insolente! — exclamou Catalina como se algo lhe fosse revelado de súbito. E, toda corada, saltou da cadeira.
Gruchenka também se levantou, mas devagar.
— Contarei a Mitya que me beijou a mão e que eu não o quis fazer. O que ele se vai rir!
— Miserável! Saia da minha casa!
— Oh! Que vergonha para si! Que palavras tão indignas de uma senhora!
— Fora daqui, mulher vendida! — gritou Catalina de semblante transtornado, agitada de ira.
— Vendida, sim! Talvez a senhora não tenha aproveitado a sombra da noite para fazer visitas a jovens por dinheiro, para vender a sua beleza?... Ah! Isto sabe-se tudo!
Catalina deu um grito e ter-se-ia atirado a ela se Aliocha o não impedisse com toda a força.
— Nem um passo, nem mais uma palavra! Não fale, não responda. Já se vai embora... Já se vai.
Acudiram as duas tias e uma criada que rodearam, cheias de espanto, a moça.
— Vou-me embora... vou-me embora — disse Gruchenka apanhando o xaile do sofá. — Aliocha, acompanha-me a casa, querido!
— Vá-se embora, vá-se embora! E depressa! — gritou o jovem, unindo as mãos num gesto suplicante.
— Queridinho, acompanha-me e dir-te-ei uma coisa muito bonita. Foi por ti que «fiz» esta cena, Aliocha. Anda, querido, acompanha-me e não te arrependerás.
Aliocha voltou-se, retorcendo as mãos, e Gruchenka desapareceu, desfeita numa gargalhada musical.
A dona da casa, acometida de uma crise nervosa, agitava-se em terríveis convulsões. Todos a rodearam.
— Já te tinha avisado — dizia a mais velha das tias. — Eu bem pretendia dissuadir-te, mas és tão impulsiva, filha! Que querias combinar com ela? Não conheces esta classe de mulheres! Pois olha que é a pior de todas! Tu és demasiado teimosa!
— Essa é mesmo um tigre! — gritou a jovem. — Por que me prende, Alexey? Tê-la-ia feito em pedaços!
Não podia dominar-se, nem perante o noviço, ou talvez a presença deste a excitasse mais.
— Deveria ser açoitada publicamente!
Aliocha começou a dirigir-se para a porta.
— Meu Deus! — exclamou Catalina juntando as mãos. — Mas ele, ele!... Como pôde ser tão ignóbil, tão desapiedado, para contar a essa mulherona o que se passou naquele maldito dia? «Quis vender a minha beleza.» Ela sabe-o! Seu irmão é um canalha, Alexey Fedorovitch!
Este quis falar, mas não conseguiu. O coração saltava-lhe pela boca.
— Ide-vos, Alexey Fedorovitch. É vergonhoso, é horrível para mim. Amanhã... peço-lho de joelhos, venha cá amanhã. Não me julgue mal. Perdoe-me. Não sei o que vai ser de mim!
Aliocha saiu para a rua a cambalear. Também sentia vontade de chorar. Chamaram-no logo em seguida e, quando se voltou, viu a criada junto de si.
— A menina esqueceu-se de lhe entregar esta carta que a senhora Hohlakov deixou ao meio-dia.
Aliocha pegou maquinalmente no pequeno sobrescrito rosado e enfiou-o no bolso.
Capítulo 11 — Uma Reputação Perdida
O mosteiro distava quase uma milha da cidade. Aliocha acelerava o passo pela estrada, deserta àquela hora e tão escura que apenas distinguia claramente a seis metros de distância.
Ao chegar perto da encruzilhada que fica a meio caminho, reparou que por detrás de um salgueiro saía um vulto que lhe cortou o passo, gritando brutalmente:
— A bolsa ou a vida!
— Ah! Claro que és tu, Mitya! — exclamou Aliocha refreando um movimento de pânico.
— Ah! ah! ah! Não pensavas encontrar-me, hem? Não sabia onde esperar-te. Perto de casa há três caminhos e poderia ter-te perdido. Por fim, ocorreu-me vir aqui, por onde necessariamente devias passar de volta ao mosteiro. O que há? Diz-me a verdade. Esmaga-me como a um inseto... Mas que tens?
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