— Nada, irmão... é que me fazes medo, Dmitri. Nosso pai continua a sangrar das feridas! — E Aliocha começou a chorar. O que o oprimia há tanto tempo obrigava-o agora a desfazer-se em lágrimas. — Por pouco o matavas... amaldiçoaste-o... e agora vens com essas brincadeiras... «A bolsa ou a vida!»
— Pois bem, e depois? Não está certo? Não estou à altura da situação?
— Não, é que...
— Ouve. Olha para a noite, como é negra. Que nuvens, que vento se levantou. Escondi-me atrás deste salgueiro para esperar por ti. E, como Deus existe, asseguro-te que pensava: para quê continuar a sofrer e a aguardar? Aqui está a minha árvore, tenho um lenço e uma camisa e num abrir e fechar de olhos se fabrica uma corda com laço e tudo, e é das coisas mais fáceis livrar a terra da minha vil presença. Antes isso que a desonra. Mas nessa altura vi que te aproximavas... Céus! Parecia que um sentimento novo inundava a minha alma, de repente. Ainda havia um homem de quem gostava. E eis que vinha até mim esse homem, o meu querido irmão, a quem amo mais do que a ninguém neste mundo, o único a quem quero. E quis-te tanto, tanto naquele momento que pensei atirar-me ao teu pescoço, e quando ia fazê-lo resolvi fazer de tolo e assustar-te, de brincadeira, e gritei como um idiota: «A bolsa!» Não faças caso da minha imbecilidade... Foi uma tolice, mas crê que o fundo da minha alma é reto... Conta-me o que se passou. Despedaça-me, esmaga-me sem piedade! Estará furiosa?
— Não, não... Nada disso, Mitya. Encontrei as duas ali...ali.
— As duas? Mas que duas?
— Gruchenka e Catalina Ivanovna.
Dmitri ficou estupefacto.
— Impossível! — exclamou. — Tu sonhas! Gruchenka estava com ela?
Aliocha contou-lhe o que se passara em casa de Ivanovna. Falou sem parar durante dez minutos, sem eloquência nem grande rigor na expressão dos factos, mas com muita franqueza e procurando não omitir nada importante, exprimindo a sua opinião em termos vivos e oportunos. Dmitri escutava, olhando-o com fixidez e imobilidade de esfinge, dando a impressão exata de entender o justo alcance de todos os pormenores. Mas à medida que a narração avançava, nublava-se-lhe o rosto de sombras e ameaças. Franziu o sobrolho, rangeu os dentes e o olhar tornou-se ainda mais rígido, mais concentrado, mais terrível. Bruscamente, porém, com incrível rapidez, dissipou-se a borrasca, mudou o rosto selvagem, entreabriram-se os lábios oprimidos e rompeu numa gargalhada estrepitosa, franca e irresistível. Podia quase dizer-se que rebentava, e tão desenfreado era o riso que o impediu de falar por muito tempo.
— Então ela não quis beijar-lhe a mão? E não a beijou? E saiu de lá a correr? — exclamava num transporte de gozo que se podia classificar de perverso, se não fosse tão nervoso e espontâneo. — A outra chamou-lhe tigre, não foi? Pois é o que ela é! Precisava de ser açoitada na praça pública! Creio que sim, que devia! Há tempo que o merece. O que são as coisas, irmão. Que a açoitem, melhor para mim. Reputo-a rainha da «pouca vergonha». É mesmo dela, essa ação de «beija-mãos». Viste bem aquela diabólica? É a rainha de todas as que há neste mundo! No seu tipo, é magnífica! Foi para casa, não foi? Quero lá ir vê-la... Ah!... Vou a correr! Não me acuses, Aliocha. Concordo que o melhor seria vê-la pendurada na forca.
— E Catalina?
— Também irei vê-la! Agora conheço-a melhor do que nunca! É como o famoso descobrimento dos quatro continentes, quero dizer, dos cinco. Foi um feito heroico, o seu! É a mesma Katya que não teme fazer frente a um grosseiro oficial, nada cortês, expondo-se a um ultraje supremo pelo generoso impulso de salvar o pai. E também por orgulho, por amor ao perigo, por curiosidade de azar e por sede de infinito. Dizes que a tia pretendia dissuadi-la? Tem domínio sobre ela, sabes? É irmã da generala de Moscovo e mais comedida do que esta, mas o marido foi desapossado de tudo o que tinha porque se descobriu que roubava dinheiro ao Governo. Desde então, ela nunca mais levantou a cabeça. Bem pode dar conselhos a Katya, que não os escutará. Crê que pode submeter todos à sua vontade, que tudo poderá vender. Pensou que encantaria Gruchenka, se isso lhe passou pela cabeça, e acreditou firmemente que sim. Que vaidade! Ela é que tem a culpa. Tu crês que se antecipou a beijar a mão de Gruchenka com intenção deliberada, com algum fim em vista? Não, na realidade deixou-se fascinar por ela. Não pela pessoa propriamente dita, mas pela ideia, pela ilusão. Tudo aquilo era a ilusão forjada na sua vaidade. Aliocha, como conseguiste fugir dessas mulheres? Escapaste deixando-lhes a túnica nas mãos? Ah! ah! ah!
— Irmão, pensaste tão pouco no ultraje infligido a Catalina Ivanovna ao confiar a Gruchenka o segredo daquele dia. Atirou-lhe à cara que ia vender a sua beleza a casa dos jovens. Podes imaginar pior insulto, irmão?
O que mais afligia o pobre Aliocha era o prazer que parecia causar ao irmão a humilhação de Catalina.
— Ora! — disse Dmitri, o rosto mudando de aspeto e batendo na testa como que desgostado por a recordação o perseguir, e a frase de Catalina tratando-o de canalha lhe ferir ainda os ouvidos. — Sim, por acaso contei a Gruchenka o que se passou naquele «dia fatal», como Katya diz. Sim, contei. Recordo-me agora de que o fiz. Foi em Mokroe, estava bêbedo, a música tocava... Mas eu soluçava, soluçava, rezando de joelhos perante a imagem de Katya, e Gruchenka compreendeu. Compreendeu tudo naquele momento. Lembro-me de que também ela chorou... Que diabo! Que bom final de sentimentos... Naquela altura, chorou e hoje enterra a faca no coração! São assim, as mulheres.
Inclinou a cabeça, absorto nos seus pensamentos.
— Sim — concordou de súbito com acento lúgubre. — Sim, sou um canalha, um perfeito canalha. Não importa se chorei ou não chorei. Sou um canalha! Diz-lhe que estou de acordo, se isso puder servir de algum consolo. Bom, por agora basta. Adeus. Segue o teu caminho que eu seguirei o meu. Não quero ver-te senão no último momento. Passa bem, Alexey.
Apertou fortemente a mão de Aliocha e, sem levantar a cabeça para o olhar e como que sentindo dor no próprio ser, tomou a direção da cidade.
Aliocha ficou a olhá-lo, atónito, sem poder crer em tão brusca despedida.
— Espera, Alexey! — gritou Dmitri, voltando atrás.— Tenho de confessar-te uma coisa, mas só a ti. Olha-me; olha-me bem. Aqui, aqui está a minha vergonha, o meu terrível opróbrio. — E dizendo isto batia no peito de maneira estranha, como se a sua desonra se ocultasse ali, em alguma parte determinada, talvez num bolso ou pendurada ao pescoço. — Já sabes quem sou: um canalha, um canalha declarado, mas aviso-te que nada do que até agora fiz e farei, para o futuro, pode comparar-se em vileza com a infâmia que neste momento preciso tenho no peito, aqui, aqui; infâmia que quero levar até ao fim, ainda que seja perfeitamente livre para a impedir. Posso cometer a infâmia ou não, entendes? Mas fica sabendo que a consumarei, que nada me deterá. Disse-te tudo, mas ocultava isto porque me faltava atrevimento. Ainda posso deter-me. Se o fizesse, amanhã mesmo reconquistaria metade da minha honra perdida; mas não será assim. Realizarei o meu desígnio, embora infame, e tu serás testemunha de to haver anunciado. Trevas e perdição! Nada de explicações; saberás tudo a seu tempo. A imunda evasiva e a mulher diabólica. Adeus. Não rezes por mim, que não sou digno nem me faz falta para nada, para nada... Não me faz falta! Fora!
E afastou-se então decididamente. Aliocha seguiu a caminho do convento, ruminando: «Mas o quê, Deus meu? Nunca mais o verei? Que dizia ele? Amanhã mesmo terei de o procurar. Falar-lhe-ei e pedirei que me explique. Que pensará ele fazer?»
Читать дальше