— Toma, lê. Serás o meu bibliotecário. Estarás melhor sentado e lendo do que a passear pelo pátio. Toma, lê este. — E deu-lhe Tardes da Casa de Campo.
Leu um pouco e não gostou. Sem um sorriso acabou por fechar o livro com frieza.
— Porquê? Não é divertido? — perguntou Fedor.
Smerdyakov ficou silencioso.
— Responde, imbecil.
— Tudo o que diz é mentira — murmurou o rapaz com uma careta.
— Pois vai para o diabo, alma de lacaio!... Aqui tens a História Universal de Smaragdov. Tudo o que diz é verdade. Lê.
Mas ele só leu umas dez páginas. Achava-o pesado. E a biblioteca fechou-se para sempre.
Pouco depois, Marfa e Grigory contaram ao senhor que Smerdyakov se mostrava cada dia mais escrupuloso e afetado. Ficava em frente da sopa durante muito tempo, pegava na colher, voltava a olhar o prato, cheirava-a e, tomando uma colherada, mirava-a à luz.
— Que tem? Alguma barata? — perguntara Grigory.
— Talvez uma mosca — observara Marfa.
O apreensivo moço não respondera, mas fazia o mesmo com o pão, com a carne e com toda a comida. Pegava num bocado com o garfo, aproximava-o da luz e só depois de grande e minuciosa observação se decidia a levá-lo à boca.
— Puf! Que ares de senhor delicado! — murmurava Grigory.
Quando Fedor Pavlovitch soube deste novo capricho de Smerdyakov, decidiu fazê-lo seu cozinheiro e mandou-o a Moscovo para que aprendesse o ofício. Esteve ali vários anos e voltou notavelmente mudado. Envelhecido, pálido, magro e muito efeminado. O caráter era o mesmo: misantropo como sempre, não suportava a companhia de ninguém. Em Moscovo tinha apanhado o hábito de se calar. A cidade desgostara-o e viveu nela sem aprender nada. Um dia foi ao teatro, de onde saiu enfadado para não voltar. Por outro lado chegou de Moscovo muito janota. Tanto a sua roupa interior como o fato de fora eram limpos e feitos por medida. Nunca deixava de escovar-se duas vezes por dia com muita ponderação e gostava de dar lustro aos sapatos até ficarem brilhantes como espelhos. E, na verdade, saiu um excelente cozinheiro. Fedor Pavlovitch fixou-lhe um salário que ele gastava quase todo em roupa, perfumes, cosméticos e enfeites. Parecia sentir tanto desprezo pelas mulheres como pelos homens e pelo que a elas respeitava mostrava-se discreto e completamente inacessível. Fedor Pavlovitch começou a olhá-lo de maneira diferente, e como os ataques epiléticos eram mais frequentes e não o contentavam os pratos de Marfa, disse-lhe um dia, olhando-o de través:
— Isto vai de mal a pior. Devias casar-te. Queres que te procure uma mulher?
Smerdyakov empalideceu de cólera, sem responder, e o amo deixou-o em paz com um gesto de impaciência. A única coisa boa era que tinha absoluta confiança na honradez do mancebo desde o dia em que, muito bêbado, perdeu três notas de cem rublos que acabara de receber e por cujo desaparecimento não deu até ao dia seguinte quando, ao começar a procurá-las, as viu sobre a mesa. Smerdyakov encontrara-as no pátio e pusera-as ali no dia anterior.
— Bom rapaz! — dissera o patrão. — Não vi outro como tu. — E ofereceu-lhe dez rublos.
Fedor Pavlovitch não só acreditava na honradez do criado como lhe dedicava um afeto especial. Ele lá sabia porquê, pois o jovem era pouco sociável com ele como o era com os demais. Quase nunca falava e o mais esperto psicólogo teria tido pouca sorte se pretendesse descobrir naquele semblante os seus pensamentos e intenções. Frequentemente se via parar a meio da sala, do pátio ou da rua e permanecer durante dez minutos como perdido em si mesmo. Dir-se-ia que não matutava, cismava ou refletia, e que sofria antes um rapto contemplativo. O pintor Kramskoy deu-nos um quadro «Contemplação». É um bosque no inverno. No caminho solitário que o atravessa, vê-se um aldeão com um sobretudo e umas botas grossas. Está, ao que parece, absorto em meditação, mas não medita nem pensa; está extasiado em «contemplação». Se alguém lhe tocasse, voltar-se-ia desconcertado, como quem desperta. Mas se lhe perguntassem em que pensava, nada recordaria, embora oculte na alma a impressão que o dominou durante o arroubo. Impressão de impressões gostosas que se têm ido vertendo no seu íntimo, penetrando-o de maneira impercetível e inconsciente. Não sabe porquê nem como. E anos depois de ter acumulado estas impressões, pode suceder que, de repente, tudo o abandone e parta em peregrinação a Jerusalém buscando a salvação da sua alma ou se levante e incendeie a aldeia onde nasceu. Talvez faça, até, as duas coisas. Existem muitos contemplativos entre os camponeses e Smerdyakov era talvez um de entre tantos, que acumulava impressões sem saber porquê nem para quê.
Capítulo 7 — A Controvérsia
A burra de Balaão tinha falado de súbito e o tema era o mais peregrino. Quando Grigory fora fazer as compras do dia, o lojista Lukyanov contou-lhe a história de um soldado raso, segundo relatavam os jornais da manhã. O tal soldado caíra prisioneiro num remoto país da Ásia e ameaçaram-no com uma morte cruel se não renunciasse ao Cristianismo para abraçar a religião de Maomé. O cristão negou-se a atraiçoar a sua fé, foi esfolado vivo e morreu louvando a Cristo. Grigory repetiu a história ao amo, que gostava de falar e de rir à sobremesa. Naquela tarde, como estava de bom humor e loquaz como nunca, disse que havia de canonizar aquele soldado e de lhe trasladar a pele para um mosteiro.
— As pessoas apareceriam ali aos montes e far-se-ia um bom negócio!
Grigory franziu as sobrancelhas vendo que Fedor Pavlovitch não só não se tinha emocionado como levava tudo para a brincadeira, aliás seu costume.
Naquele momento, Smerdyakov, que se aproximava da sala de jantar no fim das refeições, riu-se da porta.
— Que caretas são essas? — perguntou Fedor, colhendo no ar o sorriso e a intenção do cozinheiro contra Grigory.
— Creio — saltou Smerdyakov, levantando a voz repentina e inesperadamente — que a ação do soldado é muito louvável em si, mas não teria cometido, na minha opinião, nenhum pecado se tivesse renegado, por assim dizer, o nome de Cristo e a sua fé cristã em qualquer transe para salvar uma vida que pudesse depois empregar em boas ações com que expiaria a sua cobardia.
— Isso seria um grande pecado! Não sabes o que dizes. Se pensas assim, irás para o inferno e assar-te-ão como um pedaço de carne — observou Fedor Pavlovitch.
Foi então que entrou Aliocha, com grande regozijo de seu pai, como já vimos.
— Pois é verdade. Estávamos a falar de coisas que tu entendes — dizia o velho fazendo sentar o noviço para que escutasse.
— Quanto a assar-me como um pedaço de carne, não há tal coisa e, ainda que houvesse, não seria para tanto se fosse conforme a justiça — sustentou Smerdyakov com bravura.
— Que entendes por «conforme a justiça»? — gritou com alegria crescente o amo, tocando em Aliocha com o joelho.
— Este é um canalha e nada mais! — estalou Grigory na sua indignação, fazendo cara ao cozinheiro.
— Essa de canalha — contestou Smerdyakov com calma — terá de esperar um pouco, Grigory Vasilyevitch, e pensarás melhor. Suponhamos agora que caio prisioneiro dos inimigos da religião cristã e me obrigam a maldizer o nome de Deus e a renunciar ao santo batismo. Ora eu sou livre de proceder segundo me dite a razão, desde o momento que não seja pecado.
— Já o disseste antes, não o repitas e prova-o — gritou o amo.
— Miserável! — grunhiu Grigory.
— Se sou ou não miserável, espera um pouco que já to direi, Grigory Vasilyevitch. Mas não insultes, porque tão depressa diga a esses inimigos que não sou cristão e blasfeme contra o verdadeiro Deus incorro em anátema e vejo-me separado da Santa Igreja, nem mais nem menos do que se fosse pagão. Não faz falta que o diga em voz alta, basta que pense dizê-lo e fico excomungado logo nesse instante. É ou não é assim, Grigory Vasilyevitch?
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