— Um momento! — exclamou Dmitri. — Se não entendi mal, o crime não só é permitido, como tem de ser reconhecido como a inevitável e mais natural consequência da condição de um ímpio. É isto ou não é?
— Nem mais nem menos — consentiu o Padre Paissy.
— Não o esquecerei — murmurou Dmitri secamente. Todos o olharam com curiosidade.
— Está convencido de que tal seria a consequência do desaparecimento da fé na outra vida? — perguntou o Presbítero a Ivan.
— Em absoluto. O meu lema é este: «Não há virtude sem imortalidade.»
— Bendito seja por tal crença; ainda que, depois de tudo, seja muito desgraçado.
— Desgraçado? Porquê?
— Porque o mais provável é que não creia nem na imortalidade da alma nem em nada do que escreveu sobre a jurisdição da Igreja.
— Talvez tenhais razão!... Mas asseguro-vos que nem tudo o que digo é gracejo — apressou-se a confessar Ivan, corando no seu sorriso.
— Não graceja de tudo, é certo. A questão inquieta a sua alma e fica por resolver. Mas o atormentado gosta de se divertir com o próprio desespero. Quem sabe se, mesmo no seu desespero, procura distrair-se escrevendo em revistas, e discutindo em tertúlias, ainda que não creia nos próprios argumentos e no fundo da sua alma doente zombe deles... Não, a questão não está resolvida dentro de si e essa é a sua dor, uma dor que clama a verdade.
— Mas posso eu resolvê-la, e resolvê-la afirmativamente? — replicou o outro, olhando ainda o ancião com o mesmo sorriso indecifrável.
— Se não a puder resolver afirmativamente, também a não resolverá negativamente. Aí está o mal da sua alma; é isso que a tortura. Mas agradeço ao Criador que lhe tenha dado um coração corajoso, capaz de sofrer sem desmaios, e uma inteligência que pensa e procura coisas elevadas, pois a nossa morada está no céu. Deus queira que encontre a paz na terra. Deus guie os seus passos.
O ancião ergueu a mão direita para fazer o sinal da cruz sobre Ivan. Este aproximou-se, beijou a mão que o abençoava a regressou ao mesmo lugar em silêncio, com grande domínio da sua pessoa. Isto e a conversa precedente, mantida com tanto aprumo e certa solenidade por Ivan, deixou a todos tão surpreendidos que permaneceram mudos por um momento e até o próprio Aliocha parecia embargado. Mas Miusov encolheu os ombros e Fedor Pavlovitch saltou imediatamente do lugar onde estava.
— Santo Padre! — exclamou, apontando Ivan. — Este é o meu filho, carne da minha carne, o predileto do meu coração! É o meu respeitabilíssimo Marl Moor, por assim dizer, enquanto aquele que acaba de entrar, Dmitri, contra quem vos peço justiça, é o díscolo Franz Moor, os dois bandidos de Schiller; eu sou o poderoso conde Von Moor. Julgai-nos e salvai-nos! Necessitamos das vossas orações e ainda mais das vossas profecias!
— Deixe-se de chalaças e não comece a insultar os seus filhos — respondeu o Presbítero com voz débil e cansada. Era óbvio que se fatigava e as forças começavam a abandoná-lo.
— Uma farsa indecente! O que eu temia! — gritou Dmitri indignado. E levantando-se também, dirigiu-se ao Presbítero. — Perdão, reverendo Padre; sou um homem sem cultura e não sei em que termos me devo dirigir a vós, mas surpreende-me a vossa bondade em nos conceder esta reunião. Meu pai só deseja dar um escândalo. Ele sabe porquê, sempre tem algum motivo. E eu também creio saber...
— Todos me censuram, todos! — saltou Fedor Pavlovitch. — Mesmo Pyotr Alexandrovitch! Sim, senhor, sim! Também tu me culpaste — repetiu, voltando-se para Miusov, que nem sonhava em interrompê-lo. — Acusam-me de me ter abotoado com o dinheiro dos meus filhos e de o ter estafado. Mas acaso não temos juízes? Eles apreciarão, Dmitri Fedorovitch, em vista dos teus recibos, das tuas cartas e das tuas assinaturas quanto tinhas, quanto gastaste e quanto te sobra. Por que é que Pyotr Alexandrovitch, que te conhece, se recusa a emitir o seu juízo? Porque todos se voltaram contra mim, como se Dmitri não me devesse ainda dinheiro, e não pouco. A sua dívida alcança alguns milhares, segundo provarei com documentos. Toda a cidade fala da sua libertinagem. E quando estava na guarnição, várias vezes tirou mil e dois mil rublos para seduzir alguma moça honesta. Sabemos tudo, Dmitri Fedorovitch, sabemo-lo com os mais pequenos pormenores! E prová-lo-ei! Quereis crer, santo Padre, que conquistou a mais honrada jovem de uma nobre e rica família, filha de um antigo chefe, um bravo coronel, cheio de honras e condecorações? Pois bem, comprometeu-a com promessas de casamento e agora que se encontra aqui, órfã, ele pôs-se a rondar como um palerma, sob o nariz da noiva, certa sedutora, uma sedutora que vivia... maritalmente, não sei como dizê-lo, com um homem muito digno de respeito e é pelo seu caráter independente uma fortaleza inacessível, tanto quanto o pode ser uma mulher legítima porque ela é virtuosa; sim, senhor, é virtuosa. Dmitri Fedorovitch quer abrir esta fortaleza com uma chave de ouro, e aqui tendes porque é insolente para comigo, tentando arrancar-me dinheiro. Não lhe chegam os milhares que já gastou com essa mulher. Está continuamente empenhado em a conquistar, e nunca adivinharíeis quem ela é. Digo-o, Mitya?
— Cale-se! — gritou Dmitri. — Espere até eu sair daqui. Não se atreva a manchar na minha presença o nome de uma jovem honrada. Não lhe permitirei o ultraje de pronunciar uma palavra que a ela se refira! — terminou já sem alento.
— Mitya! Mitya! — exclamou o pai num arranque de sentimentalismo. — Já não te importa a bênção paternal? E se eu te amaldiçoasse?
— Hipócrita desavergonhado! — rugiu Dmitri, cheio de furor.
— Já veem como trata o próprio pai! O seu pai! Como será com os outros? Imaginai, senhores; vive aqui um homem pobre, mas bom e carregado de filhos, um capitão que tive de demitir, mas sem escândalo, sem processo, sem manchar a sua honra; pois há três semanas Dmitri agarrou-o pelas barbas numa taberna, arrastou-o assim até à rua e, diante de toda a gente, deu-lhe uma sova brutal, tudo porque esse homem é meu mandatário em certos negócios sem importância.
Dmitri tremeu de raiva.
— É mentira! Na aparência é verdade, mas mentira na realidade. Eu não justifico os meus atos, pai. Sim, senhores, confesso-o. Portei-me brutalmente com esse capitão e ainda agora me não passou o desgosto da minha crueldade. Mas esse capitão, esse mandatário vosso, fora a casa da que vós apelidais de sedutora propondo-lhe que aceitasse as dívidas que vós tínheis minhas e me perseguisse até me enviar para a cadeia se eu persistisse nas minhas legítimas reclamações. Agora condena a minha inclinação por tal senhora quando o senhor mesmo a incitava a cativar-me. Ela mesma mo disse... Disse-mo rindo-se de si... De si que desejava meter-me na prisão por ciúmes, porque a assediava procurando conquistar os seus favores; também isso eu conheço, até ao mais pequeno pormenor, porque ela me contou tudo, rindo-se, ouve? Rindo-se. E é este o moralista, o pai que repreende o filho vicioso. Perdoem a minha cólera, senhores, mas pressentia já que esta velha raposa nos reunia com a intenção de provocar um escândalo. Vim para lhe perdoar se me estendesse a mão; para lhe perdoar e para obter o seu perdão. Mas já que injuriou, não a mim precisamente, mas a uma digníssima jovem por quem sinto tal respeito que não me atrevo a pronunciar o seu nome em vão, não vejo qualquer inconveniente em o desmascarar, embora seja meu pai.
Não pôde continuar. Os olhos lançavam faíscas, a respiração cortava-se-lhe. Todos estavam comovidos; todos se tinham levantado, com exceção do Padre Zossima, cuja decisão os monges esperavam com gravidade.
O Presbítero permaneceu sentado, pálido, mais por cansaço do que por excitação; um sorriso suplicante aflorava-lhe aos lábios e, de quando em quando, erguia as mãos como para conter os raios daquela tormenta que dissiparia com um gesto. Mas parecia esperar algum acontecimento e vigiava atentamente uns e outros, procurando descobrir o que ainda se não revelara com claridade.
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