— Agradece-lhe e diz-lhe que não irei — respondeu Aliocha, esforçando-se por sorrir. — Acaba o teu discurso para que eu te exponha aquilo que penso.
— Não há nada por acabar, está tudo bem claro. Sais-te sempre com a mesma, irmão. Se tu és um sensual, como será Ivan, tão Karamazov como tu? Sois uns sensuais, uns desordenados de avareza e loucura! O teu irmão Ivan escreve artigos sobre teologia por diversão, por loucura. Nem ele mesmo sabe porquê, pois é um ateu que não acredita no que diz. Tenta roubar a noiva a Dmitri e penso que o conseguirás, até com o próprio consentimento deste, que a cederá para ficar livre com Gruchenka. Dmitri dispõe-se a fugir com esta, apesar de toda a sua nobreza e desinteresse. Estes são os homens sobre quem cai com todo o rigor a fatalidade. Não sei que diabo se passa com eles! Conhecem toda a vileza dos seus atos e não podem evitá-los. E, ouve ainda, o velho do teu pai quer lançar a armadilha a Mitya. Está louco por Gruchenka; baba-se todo quando a olha. Por ela, nada mais que por ela, armou tal escândalo aqui. Sobretudo porque Miusov lhe chamou «mulher de vida fácil». Está mais «encornado» do que um gato ciumento. Ao princípio tratava com ela só como encarregado das tabernas e não sei que outros negócios pouco limpos. Mas agora viu o que ela valia e encheu-se de uma paixão que precisa de camisa de forças. Importuna-a com as suas ofertas, pouco aceitáveis para quem se considera digna, e por fim, por este andar, pai e filho chocarão inevitavelmente. Mas ela não atende nem a um nem a outro, coqueteando com ambos e fazendo-os sofrer enquanto não decide qual dos dois mais lhe convém. O papá é rico e a ela poderia tirar-lhe mais dinheiro, mas não se casaria e, pela certa, a avareza venceria o amor e fechar-lhe-ia a bolsa. É isto o que dá vantagem a Mitya, porque está disposto a casar-se. Sim, senhor, está disposto a abandonar a noiva, uma beleza incomparável, filha de um rico coronel, e a casar-se com Gruchenka, a antiga amiga de Samsonov, um negociante cheio de vícios, bruto e sem nenhuma educação. Tudo isto pode originar um conflito sangrento e teu irmão Ivan não espera outra coisa, pois bem gostava de ver todos a três metros do chão. Ficará com Catalina Ivanovna, por quem suspira tanto como pelos seus sessenta mil rublos. Já é bastante isso para atrair um pobre homem que não espera melhor futuro do que um cão. Além do mais já percebeu que, longe de atraiçoar Mitya, lhe prestará um enorme serviço. Ainda a semana passada, um tanto embriagado, declarava em voz alta que era indigno de Katya, sua noiva, e que seu irmão Ivan era o único homem que a merecia. Catalina Ivanovna acabará por se render à sedução de Ivan. Já vacila entre um e outro. Mas quem é Ivan, que todos adoram? E ele rir-se-á, zombando de vocês!
— Como sabes? Como podes estar tão bem informado? — perguntou Aliocha com enfado.
— Porque perguntas se tens medo que te responda? Tu mesmo estás confessando que digo a verdade.
— Não gostas de Ivan. Ele não se deixa tentar por dinheiro.
— Verdade? E a formosura de Catalina Ivanovna? Não é só o dinheiro! Claro que sessenta mil rublos é sempre um bom atrativo!
— Meu irmão está acima de tudo isso. O dinheiro não poderia preencher as suas aspirações. Talvez mesmo se sacrifique!
— Que quimera é essa? Que raio de aristocratas!
— Ó Micha! O espírito dele exalta-se, esforça-se por deitar abaixo os muros que o encerram na dúvida; não procura milhões, mas sim uma solução para os problemas que o absorvem.
— Isso é um plágio, Aliocha. Estás a repetir as frases do Presbítero. Achas então que Ivan é para ti um enigma? — replicou Rakitin com evidente malícia. — Que enigma tão imbecil! É indecifrável! Pensa bastante e compreenderás tudo. O artigo dele é absurdo, ridiculamente absurdo. E já ouviste a sua formosa teoria: «Se a alma não é imortal não há virtude e tudo é legal.» Lembra-te de como o teu irmão gritou: «Tê-lo-ei em conta!» Uma teoria que vem a propósito para os malvados! O quê, para os malvados? Digo mal, para os pedantes e fanfarrões que incham de profundas dúvidas sem solução! Ele fala ex-catedra e o que decidir que é certo devemos admiti-lo e confessá-lo! A sua teoria é uma pura patranha! A humanidade encontrará em si mesma a forma de viver pela virtude, sem necessidade de crer na imortalidade da alma. Essa força está no amor à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
Rakitin exaltava-se. De repente, como se se lembrasse de algo, deteve-se e disse com um sorriso torcido:
— Bem, basta. De que te ris? Pensas que sou um imbecil?
— Nunca pensei em tal. Já sei que és inteligente, mas... não faças caso. Ria tolamente ao ver a tua exaltação. Qualquer pessoa que te ouvisse pensaria que Catalina Ivanovna te não é de todo indiferente. Há algum tempo já que penso ser por isso que detestas meu irmão Ivan. Terás ciúmes dele?
— E o dinheiro que espera receber? Por que não falas nele?
— Não, não falo no dinheiro. Não quero ofender-te.
— Acredito, já que o dizes, mas vão fazer o inferno para outro lado, tu e o teu irmão. Não compreendes que se possa esquecer, sem Catalina Ivanovna? E por que diabo havia eu de gostar dele? Se ele me dá a honra de me desprezar, não poderei corresponder-lhe com três quartos desse mesmo desprezo?
— Nunca o ouvi falar de ti. Nem bem, nem mal. Nunca fala no teu nome.
— Pois disseram-me que antes de ontem me colocou que nem um disparate em casa de Catalina Ivanovna. Já vês como tem interesse pelo teu humilde servo. De modo que qual dos dois é ciumento, irmão? Foi tão bom para comigo que pomposamente declarou que se não obtenho imediatamente o cargo de arquimandrita ou me faço monge, irei a São Petersburgo como redator crítico de uma revista qualquer importante da qual serei dono ao fim de dez anos. Orientá-la-ei para o liberalismo e o ateísmo, com toques de socialismo, mantendo-me na expectativa, iludindo o povo. Segundo o teu irmão, esse toque de socialismo não me impedirá de arranjar recursos e prosperar com a ajuda de algum judeu, até poder, por fim, construir para mim uma grande casa para onde mudarei a redação, cobrando renda pelos andares superiores. Até já está marcado, como solar para a minha quinta, o local onde atualmente se encontra uma ponte sobre o rio Neva.
— Mas, Micha, poderá isso vir a cumprir-se à risca?! — disse Aliocha, incapaz de esconder o riso.
— Também tu gostas do sarcasmo, Alexey Fedorovitch!
— Não, era a brincar. Desculpa! Tinha outra coisa na cabeça... Perdoa-me... mas como sabes tudo isso? Estavas com Catalina Ivanovna quando falaram de ti?
— Eu não, mas estava Dmitri Fedorovitch. Eu próprio o ouvi contar. Serei franco contigo. Não foi a mim que o disse, mas escutei tudo involuntariamente, escondido na alcova de Gruchenka durante uma das visitas que lhe fiz.
— Ah, cala-te! Tinha-me esquecido que ainda sois parentes.
— Parentes? Eu, parente de Gruchenka? — exclamou Rakitin, enrubescendo. — Estás louco? Perdeste a cabeça?
— Pois então? Não sois parentes? Tinham-me dito...
— Quem to poderá ter dito? Estes Karamazov julgam-se a família de melhor ascendência avoenga quando o pai foi um triste palhaço de sobremesa que se dava por muito feliz se o deixavam comer entre os criados. Eu posso ser filho de um pope e valer bem pouco aos vossos olhos de nobres, mas não me ofendeis a ponto de me arrastar tanto. Também possuo o sentimento da honra, Alexey Fedorovitch, e vê se entendes de uma vez que não sou parente de uma prostituta como a Gruchenka.
Rakitin ardia em cólera.
— Perdoa-me, por piedade! Não queria... além de que... por que razão lhe chamas prostituta? Ela é... uma dessas mulheres? — E o sangue afluiu ao rosto de Aliocha. — Repito que me disseram que tinham laços de parentesco. Tu visita-la com frequência e afirmaste mesmo que não era tua amiga. Não podia acreditar que a desprezavas tanto. Merecerá um tratamento assim tão severo?
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