— Se vou vê-la é porque tenho razões para o fazer. A ti isso não importa. Quanto ao parentesco, tu é que o deves ter, pelo teu pai e pelo teu irmão, melhor do que eu. Bom, já cá estamos. É melhor que vás para a cozinha. Olé! Que aconteceu? Mas que é isto? Chegámos tarde. Como pode ter acabado já o almoço? De certeza que os Karamazov fizeram outra brincadeira de mau gosto. Aposto que sim! Teu pai foge do Superior seguido de Ivan. Olha o Padre Isidor, como chama por eles da porta e teu pai grita, agitando os braços! Deve tratar-se de discussão. Sim, Miusov põe os cavalos a galope. E o velho Maximov a correr! Deram escândalo e adeus almoço! Que não tenha sido à pancada com o Superior!... Quem sabe se foram eles que apanharam? Bem o merecem!
Katikin não se enganava. Acabava de dar-se uma cena escandalosa, sem precedentes, provocada de maneira fulminante.
Ao chegar perto do Hegúmeno, Miusov procurou acalmar-se como convinha a um cavalheiro de boa educação. Sentia vergonha do mau humor manifestado na cela do diretor, culpando-se do facto de um ser tão desprezível como Fedor Pavlovitch haver conseguido apeá-lo da sua dignidade. «Não há que culpar os monges, que são pessoas decentes. Creio mesmo que o Superior é de sangue nobre. Devo mostrar-me amável e cortês. Não discutirei. Falarei com eles amigavelmente, provando-lhes a minha boa educação e... convencer-se-ão de que nada tenho a ver com esse Esopo, com esse Pierrot, que me meteu num tão grande sarilho.»
Decidira cancelar o litígio, cedendo ao mosteiro, de uma vez, os direitos de corte de árvores e pesca, o qual não lhe foi muito penoso, pois além das poucas vantagens que isso representava para si, não sabia sequer de que rio e bosque se tratava.
Tão boas intenções foram corroboradas ao entrar na sala de jantar do Hegúmeno, a qual não o era na verdade, pois que os aposentos reservados àquele compunham-se de duas salas contíguas, mais espaçosas e arranjadas do que as do Padre Zossima, embora sem qualquer luxo. Os móveis eram de acaju e couro segundo o decadente estilo de 1820, o chão não estava encerado, mas tudo brilhava de limpeza e as janelas alegravam-se numa profusão de flores exóticas. O mais sumptuoso naquele momento era a mesa, preparada com grande esmero e certa elegância. A toalha era branca de neve, os talheres reluzentes e o pão ricamente dourado de três espécies. Havia duas garrafas de vinho, outras duas de excelente hidromel e uma de kvas. As duas últimas, feitas no mosteiro, eram muito apreciadas no país. Não havia vodka.
Rakitin sabia já que se serviriam cinco pratos: uma sopa à marinheira com pastéis de peixe; um peixe grande cozido e enfeitado de maneira especial; filetes de salmão, pudim gelado e compota e, por fim, manjar branco. Rakitin estava bem informado, porque não pôde resistir à tentação de andar cheirando pela cozinha, onde tinha sempre o nariz. Aliás metia-o sempre onde havia algo para cheirar. Era um moço fora do vulgar e invejoso, muito convencido do seu talento e habilidoso em apanhar tudo o que andasse no ar, do que se aproveitava excessivamente. Julgava-se chamado a ocupar um posto proeminente, mas Aliocha, que se lhe havia afeiçoado, afligia-se ao notar que o amigo era desonesto sem inquietações de consciência. Alardeava, pelo contrário, a sua integridade, já que não roubava o dinheiro que encontrasse descuidado.
Rakitin não merecia a consideração de ser convidado para comer. Da comunidade, apenas o haviam sido os padres Yosif e Paissy e outro monge que esperavam já na sala em companhia de Maximov, quando chegaram Miusov, Kalganov e Ivan. O Superior avançou uns passos ao seu encontro. Era um velho alto, magro, forte, de cabelos negros que começavam a embranquecer, o rosto alongado e ascético. Saudou em silêncio e os convidados acercaram-se para receberem a bênção. Miusov pretendeu beijar-lhe a mão, mas ele impediu-o, retirando-a. Contudo, Ivan e Kalganov tomaram-na num momento de descuido e beijaram-na como fazem os camponeses.
— Temos de pedir a Sua Reverência — disse Miusov sorrindo afavelmente e em tom grave e respeitoso — que nos desculpe se vimos sem um cavalheiro, Fedor Pavlovitch, que também estava convidado, mas que recusou, não sem motivo, a honra da sua hospitalidade. Na cela do reverendo Padre Zossima exaltou-se, aborrecendo-se com o filho e deixando escapar certas palavras fora de propósito... Na realidade, inconvenientes mesmo, como já deve saber Sua Reverência — e olhou de lado os monges. — Reconhecendo a falta cometida e sentindo-se arrependido e envergonhado, pediu-nos que expressássemos o seu sincero desgosto. Numa palavra, espera e quer corrigir-se para sempre, pede a vossa bênção e o perdão de tudo o que se passou.
Quando Miusov terminou aquela peroração não restava no seu aspeto o mais pequeno vestígio de rancor. Estava contente consigo mesmo e amava a humanidade de todo o coração.
O Hegúmeno escutara-o gravemente, baixou depois a cabeça e disse:
— Sinto muito a sua ausência. Talvez que durante o almoço tivesse aprendido a gostar de nós e nós dele. Sentai-vos, senhores.
Perante uma imagem, rezou em voz alta a bênção da mesa e todos mantiveram as cabeças inclinadas. Maximov uniu as mãos em atitude de piedade.
Naquele momento, Fedor Pavlovitch preparava uma das suas. Ao princípio estivera determinado a ir-se embora e sentia-se incapaz de se apresentar ao Superior depois do seu desditoso procedimento com o Presbítero, mas não porque estivesse envergonhado, antes pelo contrário. Julgou que não ficaria bem aceitar o almoço e ia para casa. Entrara já na carruagem que o aguardava na pousada, mas quando ia a arrancar mudou subitamente de ideias.
Pensou no que dissera ao Presbítero: «Quando estou em sociedade parece-me que sou o mais vil de todos e que terão de me tomar por palhaço. Por isso faço palhaçadas, porque todos e cada um são mais vis e patetas do que eu.» Considerou delicioso vingar-se nos outros das próprias indecências e recordou que em certa ocasião lhe tinham perguntado por que odiava tanto uma pessoa. Respondera com o descaramento de sempre: «Pois olha, ele nunca me fez nada, mas eu portei-me mal com ele. Por isso o odeio.»
Sorriu maliciosamente a tal recordação, ainda hesitando. Os olhos lançavam chispas, tremiam-lhe os lábios. Decidiu-se.
— Acabemos, já que começámos.
As sensações que experimentava ficaram traduzidas nestas frases:
— Bom, agora eles não vão reabilitar-me e, portanto, mais vale que os exceda na afronta por aquilo que me fizeram sofrer. Demonstrar-lhes-ei que não me importa a sua opinião!
Mandou esperar o cocheiro e voltando depressa ao mosteiro dirigiu-se aos aposentos do Hegúmeno. Sem um plano determinado, sabia que não era dono da sua pessoa e que o mais pequeno choque lhe podia arrancar as maiores insolências, embora evitasse de todo o que o pudesse comprometer legalmente. Apareceu à porta da sala no preciso momento em que, acabado o benedicite, se sentavam à mesa.
Sem entrar, observou os comensais e riu prolongada, impudica e maliciosamente, troçando de todos e de cada um.
— Julgavam que me tinha ido embora, mas estou aqui! — exclamou sem dirigir-se particularmente a ninguém.
Todos o olharam, atónitos, pressentindo uma cena repugnante, grotesca, escandalosa. Miusov passou bruscamente da mais beatífica placidez à irritação mais selvagem. Naquele momento despertaram em si todos os seus sentimentos rancorosos.
— Não posso suportar isto! Impossível! Impossível!... Decerto... em absoluto!
Todo o sangue lhe subiu à cara. Queria ser categórico no que dizia, mas como não encontrasse palavras adequadas procurou o chapéu.
— Não podes com quê? — gritou Fedor Pavlovitch. — O que é que é impossível, certo e absoluto? Reverendo Padre! Entro ou não? Admitis-me como convidado?
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