Deus não se dignou dar filhos a este casal. Tiveram apenas um, que morreu. Grigory adorava crianças e não se envergonhava disso. Quando Adelaide Ivanovna fugiu, pegou em Dmitri, lavou-o, penteou-o e fez de pai dele durante um ano. Depois cuidou também de Ivan e de Aliocha, e por agradecimento lhe deu a viúva do coronel uma bofetada. A sua grande esperança, o seu próprio filho, nasceu prematuramente causando-lhe pena e horror. O pobre homem ficou tão estupefacto ao ver que a criatura tinha seis dedos que, até ao dia do batizado, não articulou palavra, nem apareceu a ninguém. Durante aqueles três dias, que eram de primavera, ouviu-se, persistente, o ruído do enxadão na horta vizinha. Cavando e pensando, chegou a uma conclusão, e quando entrou no pavilhão onde o esperavam o clero e os convidados, entre os quais Fedor Pavlovitch, o padrinho, desatou-se-lhe a língua dizendo que o miúdo «não devia ser batizado». Participou-o com calma, com parcimónia, acentuando cada palavra e olhando o sacerdote com marcada significância.
— Por que não? — perguntou este, jovialmente surpreendido.
— Porque é um dragão — murmurou Grigory.
— Um dragão? Porquê um dragão!
Grigory calou-se durante um momento e depois resmungou, sem vontade de dizer mais.
— Um monstro da Natureza!
Todos riram e, claro, a criança foi batizada. O pai rezou devotamente no batistério, sem mudar a sua opinião nem meter-se em nada. Enquanto o pequeno viveu, o pai apenas o olhava e saía; mas quando, aos quinze dias, morreu de aftas, ele próprio o meteu no ataúde, contemplou-o com angústia e, quando o baixaram à cova, caiu de joelhos, encostando a fronte à terra. Nunca mais falou do filho. Marfa tão pouco o mencionava. Notou a mulher que, desde o dia do enterro, se entregou o marido de corpo e alma às suas devoções. Afastava-se para um canto solitário, punha os óculos de aros de prata e mergulhava na leitura de a Lenda de Ouro. Quase nunca lia em voz alta; e isso apenas na Quaresma. O Livro de Job entusiasmava-o e procurara um exemplar das Máximas e Predições do Servo de Deus Padre Isaac da Síria, que não largou durante anos e anos, tendo-o em tanto mais apreço quanto menos o entendia.
A doutrina dos açoites, de que fazia uma ideia superficial, não a considerava digna da nova fé, embora durante algum tempo os sectários estabelecidos no país o houvessem feito vacilar. O hábito de ler assuntos teológicos deu-lhe ainda maior gravidade à fisionomia.
Grigory tinha propensão para o misticismo e à impressão que lhe deixou na alma o nascimento e a morte do filho deformado juntou-se, como por desígnio especial, outro acontecimento não menos impressionante. Na noite do mesmo dia em que enterraram o filho, Marfa despertou sobressaltada, ouvindo vagidos. Chamou Grigory, que escutou e lhe pareceu que, mais do que pranto de criança, eram lamentos de alguma mulher. Saltou da cama, vestiu-se e, ao chegar à porta, ouviu distintamente uns gemidos que vinham do jardim. Estava uma noite quente de maio. A grade que separava o pátio ficava fechada de noite e não havia outro acesso, pois rodeava-a uma cerca muito alta e espessa. Grigory retrocedeu para pegar numa lanterna e na chave e, sem fazer caso do terror da mulher, que continuava a ouvir o choro de um bebé, precisamente o do seu, que a chamava, foi abrir a porta do jardim e verificou que os lamentos vinham do quarto de banho, junto à cancela.
Empurrou a porta e deteve-se, assombrado. Uma idiota que vagabundeava pelas ruas da cidade e a quem todos conheciam pelo nome de Lizaveta Smeryastachaya — Lizaveta, a Hedionda — metera-se na casa de banho, onde acabava de dar à luz um filho que jazia junto a ela, quase moribundo.
A desgraçada não falou, porque era muda.
Uma circunstância perturbava Grigory muito particularmente, confirmando as horríveis e repugnantes suspeitas que albergava. Lizaveta era uma moça baixita, com pouco mais de um metro e meio, de cara gorducha, rosada e cheia de saúde e idiotice, que não contrastava com a expressão de doçura porque os seus olhos olhavam inquietadoramente fixos.
Viam-na andar sempre descalça e tanto no inverno como no verão só usava uma camisa de tecido grosseiro. A cabeleira, negra e crespa, enredava-se-lhe como lã de carneiro, parecendo um gorro feito de uma mistura de lama, folhas, fios e gravetos. O pai era um alcoólico infeliz que vivia miseravelmente de fazer recados a alguns comerciantes. Viúvo havia muito tempo, doente e colérico, maltratava a filha sempre que esta o visitava. Mas isto acontecia raramente pois ela vivia da caridade das pessoas que consideravam a idiota um ser predileto do Senhor. Os amos de Ilya e outras boas almas, geralmente comerciantes, empenhavam-se em a vestir e calçar, e várias vezes lhe deram botas e samarras para que não sentisse frio.
Deixava-se vestir sem resistência, mas quando chegava a alguma paragem, quase sempre à porta da Catedral, aí deixava as suas galas e volvia a andar descalça e em camisa. Em certa ocasião foi vista por um governador de província nomeado recentemente que vinha passar a visita de inspeção e os seus escrúpulos de novato sobressaltaram-se. Advertiram-no de que era idiota, mas ele achou que uma jovem que andava em camisa alterava a ordem e exigiu providências que foram esquecidas logo que virou costas. Quando o pai morreu, a órfã foi ainda mais grata aos olhos das pessoas piedosas. Todos gostavam dela e nem os garotos a maçavam agora. É bom lembrar que os rapazes das nossas escolas são feitos da pele de Barrabás!
Podia entrar na casa de qualquer pessoa sem que ninguém a incomodasse; antes pelo contrário, era recebida com uma palavra amável e algum socorro. Se lhe davam uma moeda, tomava-a e ia deitá-la na caixa das esmolas de uma igreja ou de um cárcere; se um pão ou um bolo, alegrava com ele o primeiro miúdo que lhe aparecesse. Aconteceu, por vezes, deter uma senhora rica para lho oferecer e ser-lhe aceite com carinho. Ela apenas se alimentava de pão negro e água. A ninguém inquietava a sua presença numa loja onde houvesse ao alcance da mão objetos de luxo ou dinheiro, pois tinham a certeza de que não tocava sequer numa agulha. Dormia de preferência no átrio de qualquer igreja ou nas hortas, onde penetrava saltando as valas de caniços que por então eram a única defesa. Costumava, uma vez por semana, «ir a casa», à dos antigos donos de seu pai, e todas as noites no inverno a fim de dormir no vestíbulo ou no curral. Era para admirar que suportasse aquela vida, mas havia-se acostumado a ela e embora fosse enfezada era de constituição robusta. Andavam enganados os que atribuíam a orgulho a sua conduta. Que orgulho pode ter uma mulher que, por expressão, só lança um grunhido de vez em quando?
E numa noite quente de setembro aconteceu que um grupo de boémios um pouco tocados voltavam do casino, fora da cidade, aproveitando a lua. Ao chegar junto da ponte que atravessava um charco de águas malcheirosas a que chamávamos rio, distinguiram Lizaveta entre as sarças. Pararam a olhar para ela, trocando frases agudas que provocavam gargalhadas satíricas.
Então, um jovem elegante lembrou-se de perguntar se consideravam possível tratar aquele animal como uma mulher e quase todos foram da mesma opinião, negando a possibilidade com gestos de repugnância. Mas Fedor Pavlovitch, que estava no grupo, declarou solenemente perante os outros cinco que não só havia de ser possível como até muito interessante tal aventura... Certo que na ocasião exagerava as chalaças e comprazia-se em adiantar-se uns passos aos companheiros para os divertir, tratando-os de igual para igual, ainda que na realidade apenas o admitissem a título de palhaço. Acabava de morrer a primeira mulher e ele havia posto uma fita preta no chapéu, o que contrastava vergonhosamente com a sua conduta repugnante.
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