Os companheiros, divertidos, riram daquela inesperada saída e houve quem o estimulasse, mas os demais acharam mal e todos se afastaram sem parar de rir.
Fedor Pavlovitch bem jurou logo que seguiu com eles; e talvez fosse assim, ainda que ninguém jamais saberá a verdade. O caso é que cinco ou seis meses depois toda a cidade falava com sincera indignação da gravidez de Lizaveta, perguntando-se quem teria podido ultrajá-la tão vilmente, e em seguida correu um grave rumor em que se misturava, para o condenar, o nome de Fedor Pavlovitch. Quem o divulgara? Do grupo de foliões só se encontrava um na cidade, respeitável funcionário civil, entrado nos anos e pai de umas moças já crescidas a quem não convinha meter-se no assunto, ainda que para isso houvesse algum fundamento. Fedor Pavlovitch foi execrado por todas as línguas. Pouco se importava ele o que dissessem os benditos comerciantes; a sua reputação não podia estar em pior circunstâncias e o orgulho não lhe permitia «rebaixar-se» a dialogar mais do que com o círculo de oficiais e nobres a quem tanto divertia.
Grigory susteve brigas com toda a gente, saindo tão energicamente em defesa do amo que conseguiu desviar as suspeitas da maioria.
«A moça é que tem a culpa», afirmava, e o cúmplice seria Karp, um criminoso escapado da prisão que, temíamos, se ocultava na cidade e que, efetivamente, durante aquele outono, roubou em três povoados da comarca.
Tudo isto não esfriou a simpatia de que se rodeava a pobre idiota, e a rica viúva de um comerciante, uma tal Kondratyevna, quis tê-la na sua casa desde abril para cuidar dela depois do nascimento. Mas por muita que fosse a vigilância, Lizaveta conseguiu fugir ao sentir as primeiras dores e introduziu-se no jardim de Fedor Pavlovitch. Como conseguiu, no seu estado, saltar a enorme vala é que não se sabe. Uns diziam que devia ter sido ajudada por alguém, outros imaginaram coisas impossíveis. O mais natural é que, exercitada em saltar muros para dormir nos hortos, o tivesse conseguido de qualquer modo, caindo do outro lado e queixando-se.
Grigory correu a buscar Marfa, a quem encarregou de tomar conta de Lizaveta enquanto ele ia chamar um médico vizinho. O bebé salvou-se, mas a mãe morreu ao nascer do dia. Grigory pegou na criaturinha, levou-a para casa e, fazendo sentar a mulher, colocou-lha no regaço, dizendo:
— Um filho de Deus... todos somos pais de um órfão e nós mais do que ninguém. O nosso morto envia-nos este, que nasceu do diabo e de uma santa inocente. Cria-o e não chores mais.
Marfa cuidou do pequeno, que foi batizado com o nome de Pavel, ao qual não tardou que acrescentassem o de Pavlovitch, filho de Fedor. Este não pôs reparos em nada disto, que o divertia, mas negou sempre obstinadamente a sua paternidade. Todos aprovaram que recolhesse na sua casa a criança abandonada, para quem mais tarde inventou o nome de Smerdyakov, segundo o mote da mãe.
E aqui tendes como chegou Smerdyakov a ser o segundo criado de Fedor e vivia com Grigory e Marfa, dedicando-se principalmente a misteres culinários. Falta-me ainda dizer algo deste Smerdyakov, mas custa-me cansar a atenção do leitor com referências domésticas e deixá-lo-ei para quando vier a propósito, no decorrer desta história.
Capítulo 3 — Confissão Poética de Uma Alma Apaixonada
Aliocha ficou pensativo logo que seu pai lhe gritou do coche, mas longe de se apressar a obedecer, foi à cozinha a fim de se inteirar do que acontecera. Ao sair confiava em que, pelo caminho, Deus lhe mandaria um raio de luz sobre as dúvidas que o atormentavam. A ordem gritada para que voltasse a casa com «a almofada e o colchão» não lhe dava cuidado, sabendo de sobra que aqueles gritos eram fanfarronices de desabafo. Recordava que um comerciante, que celebrava o dia do seu santo patrono com uns amigos que acabaram por se aborrecer perante a insistência para que bebessem mais, partiu no chão toda a louça e vários móveis, rasgou as roupas e as da mulher e, por fim, fez em estilhaços os vidros das janelas, tudo para produzir efeito. No dia seguinte, já serenado, lamentava a ruína da baixela. Aliocha sabia que antes de vinte e quatro horas, talvez naquela mesma tarde, o pai o deixaria voltar ao mosteiro. Estava convencido de que o pai podia prejudicar alguém, mas a ele não; a ele ninguém lhe desejava qualquer mal, ninguém o podia ofender. Isto era um axioma e não se inquietava um momento com esse particular. Confiava em si mesmo.
Mas a grande ansiedade que o perturbava naqueles momentos, precisamente porque não podia concretizar os motivos, derivava do temor de uma mulher, Catalina Ivanovna, que com tanta urgência o chamava por intermédio da senhora Hohlakov. Esta chamada havia inquietado a sua alma desde o princípio, deixando-lhe uma pena da qual não puderam distraí-lo os acontecimentos que se tinham dado. Não era o ignorar o que iriam dizer-lhe e o que responderia, nem a proximidade e o colóquio com uma fêmea o que sobressaltava a sua timidez, pois ainda que soubesse pouco de mulheres vivera com elas até ao ingresso no mosteiro. Era ela, Catalina Ivanovna, precisamente, quem o amedrontava. Temia-a desde que a vira pela primeira vez e só a tinha encontrado duas ou três vezes, trocando apenas algumas palavras. Recordava que era bela, presumida e imperiosa. Não que a beleza dela lhe provocasse temor, mas sim algo cuja vacuidade aumentava a sua emoção espantadiça. Sabia que as intenções da jovem eram as mais nobres e que queria salvar Dmitri apesar da sua deslealdade, mas ao mesmo tempo que reconhecia e admirava estes sentimentos generosos tremia à medida que se aproximava da casa dela. Calculava que a tal hora não encontraria Ivan, o amigo, pois que seu pai o retinha, nem tão pouco teria de pensar na companhia de Dmitri. Estariam sós. Desejava vivamente entrevistar-se antes com Dmitri para saber o que resolver, sem lhe mostrar a carta; mas o irmão vivia longe e decerto estaria ausente. Deteve-se um momento e decidiu-se. Benzeu-se atropeladamente e, sorrindo, avançou resoluto para casa da terrível mulher.
Ainda que a cidade não seja grande, as casas estão disseminadas e a certa distância umas das outras. Se seguisse pela rua principal, cruzando a Praça do Mercado, daria uma grande volta e talvez não lhe sobrasse tempo para ver o pai, que estaria esperando com a sua presença o cumprimento da ordem que lhe dera. Assim, resolveu cortar caminho pelas ruas mais pequenas, saltando espinhos e abrolhos e atravessando hortas que conhecia palmo a palmo e cujos donos o saudavam, sorrindo. Chegou ao horto de um vizinho do pai, que rodeava uma casita em ruínas de quatro janelas, onde vivia uma velha doente com a filha. Esta, que servira como criada de crianças a várias famílias de alta estirpe de Petersburgo, havia um ano que tratava da mãe e vestia luxuosamente, embora a extrema miséria as obrigasse a buscar o prato de sopa e o pão que Marfa lhes dava diariamente de esmola na cozinha de Fedor Pavlovitch sem que empenhasse ou vendesse os ricos vestidos, alguns de comprida cauda, como lhe contara Rakitin, que sabia de todos os pormenores. Este só Aliocha voltou a recordar quando lhe associou a ideia de olhar para as janelas, dando nessa altura com um espetáculo completamente inesperado.
Por detrás do muro e ao lado de uma elevação, inclinando-se todo para fora, Dmitri agitava vigorosamente as mãos para lhe chamar a atenção em silêncio, com manifesto medo de ser ouvido. Aliocha aproximou-se:
— Graças a Deus que te ocorreu levantar a cabeça! Estava a ponto de gritar — murmurou, divertido. — Sobe por aqui. Pareces caído do Céu! Pensava em ti!
Também Aliocha se sentiu contente, mas não sabia onde se agarrar. Mitya segurou-lhe no braço com força prodigiosa para o ajudar e, arregaçando a sotaina, o noviço saltou com a agilidade de um equilibrista.
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