— Muito bem! Agora, vamos — disse o outro com entusiasmo refreado.
— Aonde? — perguntou baixo Aliocha, vendo o jardim deserto e a casa a uns cinquenta passos. — Por que falamos tão baixo? Não há aqui ninguém!
— Porquê? Diabos! — exclamou Dmitri, surpreendido com a sua voz forte. — Que deceções da maliciosa natureza! Estou aqui em segredo, espiando. Já te conto tudo, mas a força do segredo faz-me baixar a voz como a um tolo, mesmo quando não faz falta. Vamos para acolá e não digas nada. Mas espera; antes quero dar-te um beijo.
Glória a Deus no mundo,
Glória a Deus em mim!
era o que eu repetia antes de apareceres.
O horto tinha pouco mais de um hectare de superfície, rodeado de árvores entre as quais abundavam as macieiras, o arce, a tília e o vimeiro. O resto, salvo algumas plantações de framboesas e groselhas e a divisão de hortaliças que se via junto à casa, era terreno inculto que dava vários quintais de feno a quem o arrendava durante o verão por uns rublos.
Dmitri levou o irmão para o local mais escondido, onde as plantas trepadoras cresciam livremente emaranhadas pelas ruínas de um pequeno caramanchão cujo teto oferecia ainda algum abrigo. Deus sabe quem teria construído aquele local... Talvez um coronel reformado, um tal Von Schmidt que há cinquenta anos era proprietário da quinta, em cujo teto as vigas apodreciam, já sem madeiras de sustentação, com os ferros de travamento cheios de ferrugem e ameaçando iminente ruína. No caramanchão havia uma mesa de madeira verde, cravada na terra, com alguns bancos que ainda aguentavam o peso de um homem. Aliocha, que havia notado já a excitação do irmão, viu, ao entrar, uma garrafa meia e um copo.
— É aguardente — riu Mitya. — Já sei no que pensas: «Ainda bebe.» Não tenhas ilusões.
Despreza a opinião do povo
E deixa-te de dúvidas e receios.
— Eu não bebo, só beberrico, como diz esse porco do Rakitin, teu amigo, que há de chegar a conselheiro do Estado falando das excelências de beberricar. Senta-te. Queria apertar-te contra o meu peito até deixar-te sem alento, Aliocha, porque em todo o mundo, de verdade, o que se diz, de verdade... entendes?... Não gosto de ninguém mais do que de ti!
Pronunciou as últimas palavras com exaltação e logo acrescentou:
— De ti e de uma vadia por quem estou apaixonado, para ruína minha. Não é o mesmo uma pessoa enamorar-se do que amar. Podemos sentir-nos enamorados de uma mulher e odiá-la ao mesmo tempo. Não te esqueças! Ainda te posso dizer sobre isto coisas muito divertidas. Senta-te à mesa, perto de mim, para que te olhe. Está quieto e cala-te porque quem vai falar sou eu... já que chegou a altura. Mas repara que falarei baixo, porque nunca se sabe se as paredes têm ouvidos. Vou contar-te tudo. Não gosto de histórias em fascículos. Sabes por que te esperava com tal ansiedade agora e todos os dias? Há já cinco que a âncora está deitada neste sítio. Não sabes? Pois é porque só a ti posso dizer-te tudo. Porque preciso de ti, porque amanhã levantarei voo e será o fim e o princípio da vida. Nunca sonhaste que caías ao fundo de um abismo? Pois eu sinto-me cair, agora, mas acordado, e não tenho medo, nem o tenhas tu. Bom, tenho medo, sim, mas é agradável; quero dizer, agradável não, mas é um estado de arrebatamento, de êxtase... Que o diabo o entenda! Alma forte, alma débil, alma feminina... Pró diabo! Para mim é igual! Louvemos a natureza! Olha que Sol, que céu tão puro! Toda a folhagem permanece ainda verde. Estamos no verão e que paz às quatro da tarde! Aonde ias?
— A casa, mas queria ver Catalina Ivanovna primeiro.
— Oh, que coincidência! É assombroso! Sabes porque te esperava? Por que razão ansiava ver-te com toda a minha alma, com todo o meu coração? Para que fosses a casa de Catalina e a casa do meu pai, e acabar assim de uma vez com um e com outro. Para lhes mandar um anjo. Se pudesse mandar qualquer pessoa... mas queria que fosse um anjo. E, afinal, encontro-te já a caminho...
— De verdade? Querias mandar-me? — perguntou Aliocha com expressão dorida.
— Cala-te! Já sabias! Vejo que compreendeste tudo. Mas não fales; não me venhas agora com lágrimas e lamentos.
Dmitri levantou-se e ficou pensativo, com o indicador na fronte.
— Ela chamou-te ou escreveu-te. Por isso vais. De outra maneira não irias.
— Está aqui a carta que me enviou — disse Aliocha, tirando-a do bolso.
Mitya leu-a rapidamente.
— E tu ias pelo atalho! Ó deuses! Bendito sejais por haverdes dirigido os seus passos, por mo haverdes trazido como o peixe de ouro ao pobre e velho pescador do conto! Escuta, Aliocha, escuta, irmão. Quero dizer-te tudo pois devo confessá-lo a alguém. Um anjo do céu já o sabe, mas agora terá de sabê-lo um anjo da terra. Tu és esse anjo da terra. Tu entenderás, julgarás e perdoarás. Necessito que outro, que não seja eu, me perdoe. Escuta. Supõe que dois seres desligados de qualquer laço terrestre vão empreender o voo para o desconhecido, ou pelo menos um dos dois, e que antes de voar ou de desaparecer busca o outro e lhe diz: «Faz isto por mim», um favor daqueles que só se pedem no leito de morte. Como poderia o outro negar-se, se for um amigo ou um irmão?
— Fá-lo-ei. Mas de que se trata? Fala depressa.
— Fala depressa!... Ah!... Não tenhas pressa, irmão; não percas a calma e a paciência. Não precisamos de correr agora que o mundo anda de outro modo. Ai, Aliocha, que pena que a tua alma não possa chegar à exaltação, ao êxtase! Mas que te estou a dizer? Como se não pudesse! Sou um estúpido! Que digo!? «Homem, sê nobre...» De quem é isto?
Aliocha resolveu esperar com paciência, acreditando que a sua missão talvez começasse ali. Mitya ficou pensativo durante um tempo, de cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. De repente, rompeu o silêncio.
— Aliocha, és o único que pode ouvir-me sem rir. Queria começar a minha confissão com o Hino de Alegria de Schiller, An die freude! Não sei alemão, sei apenas essa frase. Não julgues que falo desatinadamente, por embriaguez, pois estou bem calmo. A aguardente é tudo, mas preciso de duas garrafas para me parecer com Sileno,
com o seu rosto rubicundo,
sobre o asno que tropeça.
Não bebi nem meio quartilho e não estou embriagado. Não estou, não. Estou, isso sim, iluminado, porque vou direito ao problema para o resolver. Perdoa a graça e todas as que me ocorrerem durante o dia. Não te impacientes. Tudo o que eu disser é porque tenho de o dizer. Falo a sério e vou ao assunto diretamente. Não quero que fiques em suspenso. Espera, como começa?
Selvagem e temeroso, na sua caverna
Se ocultava o desnudo troglodita,
O nómada sem teto andava errante
Devastando as férteis campinas
Com a lança e as flechas, pela selva
O feroz caçador se extraviava...
Ai de quem as ondas arrojassem
Aquelas duras e inimigas costas!
Desde o cume do altivo Olimpo
Desce, impetuosa, a Ceres maternal,
Em busca do oculto paradeiro
Da sua raptada filha, Prosérpina.
A Deusa não encontra asilo nesta terra
Adusta, nem acolhida hospitaleira
Entre os homens; nem é testemunho um templo
Do culto dos deuses.
Nem dos campos nem dos vinhedos
Se colhe o fruto para os festins
Só carnes sangrentas das vítimas
Do sacrifício fumegam no altar
E aonde quer que a triste deusa
Converta o seu olhar
Contempla na mais vil degradação
A pobre desviada humanidade.
Desatou a chorar e pegou numa das mãos de Aliocha.
— Ó amigo, amigo! Ainda caímos na mesma degradação! Tudo é dor para o homem que habita a terra, porque de todo o lado o invade a dúvida e o tormento. Não me julgues um bruto que, vestido de uniforme militar se alegra revolvendo-se no chiqueiro dos vícios, que quase não penso noutra coisa mais que neste homem degradado. E se não me engano... Que Deus o não permita... penso tanto, porque eu próprio sou esse homem.
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