A jovem não havia parado de troçar do noviço, divertida com o recato e o empenho que este punha em não a olhar. Lisa vigiava o jovem a fim de o surpreender ao menor descuido do seu olhar, e como Aliocha não pôde resistir àquele olhar tão intenso olhou-a por fim e o riso da doente soou ainda mais triunfal, desconcertando e humilhando ainda mais o noviço, que se defendeu colocando-se atrás do Presbítero. Mas pouco depois não conseguiu resistir à curiosidade de ver se o olhava e deu com Lisa a levantar-se da cadeira e quase caindo para o alcançar com a vista. Então riu ela tão estrepitosamente que o velho não pôde conter uma repreensão.
— Porque te ris assim dele, menina travessa?
Lisa corou e os olhos brilharam. O rosto adquiriu um ar grave e começou a falar com nervosismo e num tom ressentido:
— Porque se arma em tonto, como se tudo tivesse esquecido. Como se não se lembrasse de que andou comigo ao colo e brincou comigo aos cavalos quando eu era pequena!... Pois se ele me ensinou a ler! Há dois anos, quando se despediu, disse que nunca me esqueceria, que seríamos amigos para sempre, para sempre! E agora, sem mais nem menos, tem medo de mim. Crê que vou comê-lo? Por que não se aproxima? Por que não fala? Se não vem lá a casa não é porque vós o impeçais, pois já sabemos que vai aonde lhe apetece. Será bonito que eu o tenha de convidar? Se não me tivesse esquecido, não faria falta o convite. Ah! Agora pensa apenas em salvar a sua alma! Por que razão veste ele esta roupa tão larga? Se correr, cai como um saco!
E, não podendo conter-se mais, ocultou a cara entre as mãos e soltou uma gargalhada prolongada, irresistível e nervosa.
O Presbítero escutou-a, sorrindo, e deu-lhe a bênção com ternura. Quando ela lhe pegou na mão para a beijar, apertou-a bruscamente, retendo-a em frente dos olhos, e rompeu em soluços:
— Não vos envergonheis de mim! Sou uma tonta e não presto para nada... Aliocha deve ter motivos para não querer conversas com uma miúda ridícula como eu.
— Mandá-lo-ei a tua casa. Prometo — disse o Presbítero.
Capítulo 5 — O Que Há de Vir
Uns vinte e cinco minutos permaneceu o ancião fora da sua cela. Tinham tocado já as doze horas e meia e Dmitri ainda não havia comparecido, apesar de ter sido a seu pedido que se realizava a reunião.
O Presbítero encontrou os visitantes embrenhados em animada conversa, sustida principalmente por Ivan e pelos dois monges. Miusov pretendia intervir com mais vontade do que acerto, pois como se encontrava pouco a par do assunto de que se tratava, as suas observações não eram tomadas em consideração e isto aumentava-lhe a irritabilidade. Nunca suportou certo velado desprezo com que o tratava Ivan nas disputas que haviam tido.
«Envelheci nas primeiras filas do progresso europeu e, agora, estes criançolas querem pôr-me de lado!», pensava.
E Fedor Pavlovitch, que havia cumprido por um momento a promessa de permanecer quieto e mudo, olhava Miusov sorrindo maliciosamente e deleitando-se no gosto que experimentava na sua derrota.
Por fim, não pôde deixar escapar a ocasião que lhe apresentava o espírito de vingança e, inclinando-se para o outro, murmurou-lhe com a pior intenção:
— Por que não partiste depois da saudação de cortesia? Como podes permanecer entre pessoas tão mal educadas? Sentes-te mortificado e furioso, e esperas poder vingar-te confundindo-nos com a tua portentosa inteligência? Não tenhas medo, não te irás sem ter desfiado o teu talento perante estes senhores.
— Voltas ao mesmo?... Pois vou-me, agora.
— hás de ser o último de todos! — acometeu de novo o velho no momento em que o Padre Zossima entrava.
Houve uma trégua na conversa, mas o Presbítero, retomando o seu lugar, olhou-os como se os convidasse a continuar.
Aliocha viu no semblante do ancião uma terrível prostração apenas dissimulada pelo esforço. Há dias que sofria desmaios de tão extenuado que se encontrava e tinha agora a mesma palidez, a mesma brancura que se lhe notava nos lábios antes de ser atacado por aqueles acessos de debilidade. Mas era evidente o seu desejo de que a visita não se malograsse; parecia querer mantê-la com um objetivo especial. Qual? Aliocha olhava o Presbítero intensamente com esperança de o decifrar na expressão.
— Estávamos a discutir o interessante artigo deste cavalheiro — anunciou o Padre Yosif, o bibliotecário, dirigindo-se ao que regressava e indicando Ivan. — Contam muitas coisas novas, mas penso que o assunto se pode canalizar em dois sentidos. O artigo é a contestação ao livro de uma autoridade da Igreja sobre os tribunais eclesiásticos e o campo da sua jurisdição.
— Sinto não ter lido o seu artigo, mas ouvi falar nele — disse o Presbítero, fixando Ivan com olhar bondoso e penetrante.
— Defende-se nele uma posição de grande interesse — confirmou o bibliotecário. — No que respeita à jurisdição da Igreja, manifesta-se oposto à separação desta e do Estado.
— É interessante, mas em que sentido? — perguntou a Ivan o Padre Zossima.
Aquele respondeu com cortesia, desvanecendo o temor do irmão e sem deixar transparecer no discurso modesto e circunspecto o menor segundo pensamento.
— Parto do princípio de que esta confusão de elementos, quero dizer, dos princípios essenciais da Igreja e do Estado continuará, embora seja impossível que se liguem, pois tal ligação não pode levar a resultados normais e sólidos porque está cheia de falsidades na sua própria origem. Na minha maneira de ver, um compromisso entre a Igreja e o Estado sobre a jurisdição, por exemplo, não pode admitir-se num sentido real. O meu ilustre antagonista mantém que a Igreja defende uma posição precisa e definida dentro do Estado, e eu acho que, pelo contrário, a Igreja deve abarcar o Estado e não ocupar um lugar nele; e se, por alguma razão, isto é atualmente impossível, deve ao menos considerar-se como o seu fim primordial no futuro desenvolvimento da cristandade.
— Perfeitamente de acordo! — assentiu com fervor e decisão o douto Padre Paissy.
— Puro ultramontanismo! — exclamou Miusov com impaciência, retorcendo os dedos.
— Mas não somos sequer montanistas! — interveio o Padre Yosif e, voltando-se para o Presbítero, prosseguiu: — Vede a maneira de responder às seguintes proposições «fundamentais e essenciais» do adversário que é, como já sabeis, um eclesiástico. Primeira: «Nenhuma organização social pode ou deve atribuir-se o poder de dispor do direito civil e político dos seus membros.» Segunda: «A jurisdição civil e criminal não só não deve pertencer à Igreja, como é incompatível com a sua natureza, já como divina instituição, já como uma organização de homens que se associam para um fim religioso»; e, finalmente: «O reino da Igreja não é deste mundo.»
— Jogo de palavras indigno de um clérigo! — exclamou o Padre Paissy, não podendo travar o arrebatamento. — Li a obra a que o senhor responde — continuou, dirigindo-se a Ivan — e detive-me surpreendido perante a frase: «O reino da Igreja não é deste mundo.» Pois se não é deste mundo, que faz a Igreja na terra? No Evangelho, usam-se as palavras: «Não é deste mundo» num sentido diferente; é intolerável que se jogue com elas. Nosso Senhor Jesus Cristo veio estabelecer a Sua Igreja sobre a Terra. O Reino dos Céus não é, portanto, deste mundo, é dos Céus; mas aqui trata-se da Igreja que foi fundada sobre a Terra, e isto é tão claro que servir-se frivolamente dessas palavras é um jogo imperdoável e impróprio. A Igreja é, na verdade, um reino ordenado para o governo e, no fim, há de acabar imperando sobre toda a Terra. Temos disso a promessa divina.
Calou-se, como se tentasse reprimir-se.
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