— Tu não és do campo, pois não? — perguntou o Padre Zossima, olhando-a fixamente.
— Não, Padre; da cidade. Somos aldeãos, mas vivemos na cidade. Vim para vos ver, Meu Padre! Ouvi falar de vós, ouvi falar de vós! Enterrei o meu filho, e logo em seguida começou a minha peregrinação. Passei por três mosteiros e em todos me disseram: «Que procuras aqui, Nastásia? Procura-o a ele», que é o mesmo que dizer a vós. E por isso vim: ontem assisti ao ofício e hoje tenho estado a esperar-vos.
— Por que choras?
— Pelo meu filho, padre. Tinha três anos. Três anos menos três meses... Por meu filho, Padre. Estou cheia de pesar pelo meu pequenino. Foi o último que morreu. Tivemos quatro, o meu Nikita e eu, e ficámos sem filhos. Todos se foram, os pobrezitos! Os três primeiros não me deixaram tanta pena que não fosse possível consolar-me, mas o último não posso esquecê-lo. Parece-me que o tenho sempre diante de mim, que não me quer abandonar. Despedaçou o meu coração! Contemplo as suas roupinhas, as suas camisinhas, os sapatos pequeninos... e começo logo a chorar; olho para os seus brinquedos e tudo o que lhe pertencia, tudo aquilo em que tocava, e sinto-me desfalecer. Por isso disse ao meu marido, ao meu Nikita: «Deixa-me ir em peregrinação, meu senhor!» Ele é condutor de carros e não somos pobres, padre, não somos. O carro e o cavalo são nossos. Mas para que queremos agora tudo isto? O meu Nikita começou a beber na minha ausência. Já o fazia antes, quando eu lhe voltava as costas... Que se governe! Há três meses que ando por este mundo e nunca mais pensei nele, nunca mais pensei em nada, nem quero lembrar-me de alguma coisa. Que faríamos agora para viver juntos? Acabei com ele e com tudo. Não tenho para quem cuidar da minha casa nem dos meus bens, nem de nada deste mundo!
— Ouve, mãe — disse o velho. — Um grande santo da antiguidade encontrou um dia no templo uma mulher que chorava como tu por causa do seu filhinho, o único, ter sido levado por Deus. «Não sabes», disse-lhe o santo, «com que audácia estas criaturas pedem diante do trono de Deus? Realmente não há ninguém que se atreva a tanto no reino dos céus. Tu deste-nos a vida, Senhor, e apenas podemos vê-la e logo a arrebataste. E pedem e pedem com tal afinco e justiça que Deus acaba por os colocar no coro dos anjos… porque o teu filho está com o Senhor, em companhia dos anjos.» Assim falou um santo, um grande santo que não podia mentir. Fica tu também a saber, mãe aflita, que o teu filho está junto do trono de Deus, alegre e feliz, pedindo por ti. Chora, mas que as tuas lágrimas sejam de alegria.
A mulher escutava sem levantar a cabeça que apoiava na mão e dava grandes suspiros.
— Com essas mesmas palavras tentava Nikita consolar-me. «Tonta», dizia, «por que choras? Acaso não estará o nosso filho com os anjos cantando louvores a Deus?» Queria animar-me e enquanto falava assim principiava a chorar como eu, que lhe respondia: «Já sei, Nikita, já sei que só poderá estar com Nosso Senhor. Mas aqui, conosco, como estava dantes, não voltará a estar.» Se ao menos o pudesse ver durante um momento, vê-lo só por um momento, sem me aproximar nem dizer-lhe uma palavra. Sim, mesmo que fosse de um esconderijo e o pudesse ver brincando e pudesse ouvir a sua voz chamando-me: Mamã, onde estás? De maneira que pudesse escutar o ruído dos seus passos uma vez, apenas uma vez... porque me lembro tão bem da sua maneira de correr para mim, gritando e rindo! Se apenas ouvisse os seus passos, reconhecê-lo-ia! Mas voou, Padre, voou, e não ouvirei mais nada. Tenho aqui o seu cinto, mas a ele não o verei, não o ouvirei nunca mais...
Tirou do seio um cinto bordado, olhou-o durante um instante e desatou a soluçar. Ocultou os olhos nas mãos e as lágrimas corriam por entre os seus dedos finos.
— Eis aqui a antiga Raquel — disse o Presbítero — chorando os filhos e não querendo ser consolada porque não se lhos poderá devolver. É este o património das mães: o desconsolo. Não é consolação o que pretendeis, mas sim o choro. Chorar sem consolo, chorar... Chora, então, mas que o pranto te recorde sempre que o teu filho é um anjo de Deus que te olha do céu e recolhe com alegria as tuas lágrimas para as mostrar ao Senhor. A tua dor de mãe durará ainda muito, mas por fim tornar-se-á numa doce calma e as tuas lágrimas serão então lágrimas de ternura que purificarão o teu coração, limpando-o do pecado. Eu rezarei pelo descanso da alma do teu filho. Como se chamava?
— Alexey, meu padre.
— Que nome tão doce! É seu protetor Alexey, o homem de Deus?
— Sim, Padre.
— Foi um grande santo! Lembrar-me-ei do teu filho e das tuas dores, mãe, nas minhas orações; e também pedirei pela saúde do teu marido. Cometes um pecado se o abandonas. Teu filho verá, lá do céu, que seu pai está abandonado e chorará de tristeza. Por que hás de perturbar a sua felicidade? Ele vive, pois a alma é imortal, e embora não esteja presente na tua casa, está de maneira invisível muito perto de vós. Como há de voltar a casa se tu não gostas de lá estar? E aonde há de ir se não encontra juntos os pais? Ele visita-te em sonhos e os sonhos são dolorosos para ti. Volta para casa e verás como os sonhos serão doces e repousados no amor do teu filho. Volta para o teu marido, mulher, volta hoje mesmo.
— Irei, Padre, obedecendo à vossa palavra. Irei. Haveis comovido a minha alma. Nikita, estás esperando que chegue?
A mulher continuou a soluçar, mas o ancião havia já posto a sua atenção numa velhota que não vestia segundo o uso dos peregrinos e em cujos olhos se via claramente que viera da cidade com um objetivo determinado que ansiava por explicar. Disse que era viúva de um oficial, que vivia na cidade próxima e que o filho, Vasenka, estava empregado na Fazenda pública de Irkutsk, na Sibéria. Havia-lhe escrito duas vezes, mas agora já há um ano que não tinha notícias. Perguntara, mas não sabia a quem dirigir-se em busca de informações oficiais.
— E no outro dia, Stepanida Ilyinichna, a mulher de um rico comerciante, aconselhou-me: «Prokorovna, vá inscrever o seu nome na igreja para que lhe digam um responso e reze a senhora também pelo descanso da sua alma, nem mais nem menos como se tivesse morrido. Então a alma dele ficará desgostosa e tenho a certeza que se apressará a escrever-vos.» E Stepanida Ilyinichna disse-me que esta experiência costuma dar sempre bons resultados e é coisa segura. Mas eu tenho as minhas dúvidas... Vós sois a luz da nossa ignorância. Dizei-me se é verdade ou falso e se o devo fazer.
— Nem pensar! É uma vergonha até perguntá-lo! Rezar por uma alma viva! E nada menos que a mãe! É um grande pecado, parecido com a bruxaria, e que só por ignorância te será perdoado. Melhor será que peças à Rainha dos Céus, nossa doce protetora, a saúde de teu filho e o perdão do teu mau pensamento. Mas vou dizer-te outra coisa, Prokorovna: o teu filho ou virá daqui a pouco ou te escreverá. Vai e fica tranquila e certa de que vive. Sou eu que to digo.
— Deus vos pague! Deus vos pague, Padre amantíssimo e benfeitor nosso que rogais por todos nós pecadores!
Mas o Presbítero já havia fixado a sua atenção em uma jovem camponesa que, confundida no grupo, o olhava afincadamente em silêncio com os olhos cansados e inflamados de febre, olhos suplicantes que contam a ânsia de quem deseja comunicar e não se atreve.
— Que desejas, filha?
— Que me absolvas. Padre — articulou ela docemente, caindo de joelhos aos pés do santo. — Pequei e tenho medo.
Sentou-se o ancião no último degrau e a jovem aproximou-se-lhe, andando com os joelhos no chão.
— Há três anos que sou viúva — começou com uma voz velada e trémula. — A minha vida conjugal foi um tormento. O meu marido era um velho que me tratava cruelmente. Ficou doente e eu tratava dele, mas temendo sempre que se curasse e que deixasse a cama. Foi então que me ocorreu a ideia...
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