1 ...7 8 9 11 12 13 ...50 — Ao fim e ao cabo sempre resta uma abertura por onde as damas podem passar furtivamente... Não suponha que digo isto com má intenção, padre; mas creio que sabe que em Athos não se permite alguma visita de mulher, não se admitindo mesmo fêmea de nenhuma espécie... nem galinhas... velhas ou novas...
— Fedor Pavlovitch, aviso-te que darei meia volta e te deixarei aqui sozinho. Ao menos que te arrastem à força na minha presença.
— Mas que mal te faço eu, Pyotr Alexandrovitch? Olhem! — exclamou em seguida adiantando-se dentro do recinto. — Olhem que encanto de rosas há aqui!
Não havia rosas, mas os muros desapareciam sob a alegria de lindas flores outonais que cresciam por todo o lado obedecendo a mãos habilidosas: canteiros vistosos rodeavam a igreja, enfeitavam as campas e submergiam na sua vegetação a casa de madeira pintada que o ancião habitava.
— Estava tal e qual no tempo do outro Presbítero, o de Varsonofy? Ele não gostaria desta elegância. Dizem que se levantava, arrebatado, e afugentava as mulheres dando-lhes com o bastão — observou Fedor Pavlovitch, parando no primeiro degrau da entrada.
— O venerável Varsonofy tinha muitas coisas raras, mas quase tudo o que contam são coisas inventadas; nunca bateu em ninguém — respondeu o monge. — Esperem um momento cavalheiros; vou anunciar a vossa chegada.
Miusov apressou-se a advertir Fedor em voz baixa:
— Pela última vez, Fedor Pavlovitch, não te esqueças do combinado, hem? Ou te portas convenientemente ou saberás quem eu sou.
— Não compreendo por que te inquietas — replicou Fedor Pavlovitch com velhacaria. — Como se não fosse pelos teus pecados... Dizem que lê nos olhos as intenções de cada um. Mas não sabia que tomavas tão a sério esta opinião, tu, um parisiense, e dos avançados. Na verdade deixas-me pasmado!
Miusov não pôde responder ao trocista porque já os chamavam e entrou um pouco irritado e pensativo:
«Conheço-me e acho que estou indisposto. Neste momento seria capaz de puxar os cabelos a qualquer, desprezando a minha dignidade e as minhas ideias.»
Capítulo 2 — O Sempre Eterno Bobo
Saía o Presbítero do seu dormitório acompanhado de Aliocha e de outro noviço quando a visita entrou na sala onde já se encontravam esperando os monges do santuário, o arquivista e o Padre Paissy, homens de grande cultura, pouca saúde e idade madura, e um jovem de vinte e dois anos em traje secular que não se moveu de um canto enquanto durou a entrevista, observando tudo com os olhos escondidos por detrás das sobrancelhas, por força da atenção. Era um teólogo de rosto largo e saudável que vivia do amparo do mosteiro. Embora se mostrasse respeitoso, julgava que a sua situação de subordinado o afastava tanto dos hóspedes que estava dispensado de os saudar.
Os dois monges levantaram-se, inclinando-se perante o Padre Zossima até tocar o chão com os dedos; em seguida beijaram-lhe a mão. Ele correspondeu depois de lhes conceder a bênção. Efetuou-se a cerimônia com aquela unção que por vezes falta nos ritos quotidianos, mas Miusov, que estava diante dos outros, imaginou que tudo obedecia a um intencionado propósito de produzir efeito no público. Ele devia então aproximar-se, segundo pensara na véspera, só por cortesia, já que era esse o costume, e receber a bênção do Presbítero, mesmo sem lhe beijar a mão. Mas perante tanto beijo e tanta reverência por parte dos monges, mudou de opinião. Muito sério, fez uma gentil cortesia um tanto convencional e afastou-se para um canto. Fedor Pavlovitch imitou-o como um macaco. Ivan curvou-se com dignidade, mas sem tirar as mãos dos bolsos, enquanto Kalganov estava tão atordoado que se esqueceu da reverência. O velho deixou cair a mão levantada para os benzer e, inclinando-se de novo para eles, pediu-lhes que se sentassem. As faces de Aliocha ficaram vermelhas de vergonha. Todos os seus temores se haviam cumprido.
O Padre Zossima ocupou um sofá de acaju com assento de couro enegrecido pelo uso e tão estragado como as quatro cadeiras de material igual que estavam na parede em frente e nas quais tomaram assento os convidados. Acomodou-se um dos monges na porta e outro na janela, enfeitada com dois jarrões com flores. O estudante e os noviços ficaram quietos. A cela, não muito espaçosa, oferecia um aspeto fantástico. A mobília era pobre, tosca e insuficiente, mas abundavam os quadros por todos os lados. Perante uma imagem antiga da Virgem ardia uma lamparina e junto dela, como que para aproveitar a luz, encontravam-se dois santos de pomposas vestes, querubins talhados em madeira, trastes de porcelana, uma cruz católica de marfim à qual se abraçava uma Mater Dolorosa e várias reproduções litográficas de meritórias obras italianas de séculos passados, que competiam com outras de mais tosca pintura russa compradas a vendedores ambulantes. As paredes estavam cobertas de retratos de bispos, defuntos e vivos.
Miusov passou o seu olhar distraído por aquela fantástica ornamentação e fixou-o no Presbítero. Gostava de estudar de perto os carácteres mais reservados: fraqueza perdoável num homem que aos seus cinquenta anos acresce uma desafogada posição e uma certeza de experiência mundana. E assim formou imediatamente um mau conceito de Zossima. Havia, com efeito, certos rasgos característicos no velho capazes de desgostar a outros menos exigentes que Miusov. Era pequeno, miúdo e encurvado, tremiam de fraqueza as suas pernas e parecia ter mais dez anos do que os sessenta e cinco que contava; o rosto, muito chupado, estava coberto de uma rede de pregas que se recolhiam e destacavam dos pequeninos olhos, vivos e brilhantes como dois carbúnculos; um tufo de cabelos grisalhos encimava-lhe a fronte e a barba rala e em ponta deixava ver-lhe os lábios secos, delgados e finos sob um nariz diminuto e agudo como o bico de um pássaro.
«Tudo revela uma alma cheia de vaidade e malícia», julgou Miusov, que começava a sentir-se doente.
Um relógio de parede quebrou o silêncio e a circunspeção geral dos que se encontravam reunidos, dando doze badaladas.
— A hora exata! — exclamou Fedor Pavlovitch. — E esse meu filho Dmitri sem vir! Peço que lhe perdoe, sagrado velho. — Aliocha estremeceu ao ouvir o «sagrado». — Eu sou muito pontual: nem minuto a mais nem a menos. Recordo sempre que a pontualidade é o ornamento dos reis.
— Mas ainda te falta muito para seres rei — murmurou Miusov sem se poder dominar.
— Sim, é verdade, não sou rei. Acreditas, Pyotr Alexandrovitch, que já me dei conta disso? Mas que hei de fazer? Falo sempre fora de propósito. Vossa Reverência — exclamou em tom patético — encontra-se frente a um verdadeiro bobo! Tenho gosto em apresentar-me assim. Um hábito muito arreigado move a minha língua com bastante frequência e fá-la disparatar com o bom intento de divertir as pessoas e tornar-me simpático. Um homem deve sempre procurar ser grato aos outros, não é verdade? Uma vez, há sete anos, fui com uns amigos, comerciantes de uma cidade de pouca importância, ver o chefe da polícia não sei já porquê e convidámo-lo para comer conosco. Era um homem alto, bem constituído, sério e de caráter azedo: o tipo mais perigoso para tais casos. Pois bem: sem me encomendar a Deus nem ao Diabo, aproximei-me e, com a desenvoltura de um homem do mundo, disse-lhe: «Senhor Ispravnik, seja o nosso Nepravnik». «Que entendeis por Nepravnik?», perguntou-me. Vi em seguida que a graça lhe havia assentado mal e que o desejava mostrar. «Nada», respondi-lhe. «Queria fazer graça para rir à custa do senhor Nepravnik, que é o nosso conhecido diretor de orquestra, já que necessitamos de algo parecido para chegar a um acordo», respondi muito razoavelmente. «Perdoai», volveu-me. «Eu sou um Ispravnik e não tolero que alguém brinque com a minha profissão.» Voltou-me as costas e foi-se embora. Eu segui-o, gritando: «Sim, sim. Sois inspetor e não diretor!» «Não», insistiu. «Haveis querido que seja diretor e sê-lo-ei!» Crede-me, dirigiu tão bem o nosso negócio que ficámos arruinados... É sempre o mesmo... sempre o mesmo. A minha cortesia nunca me serviu para mais do que prejuízo. Uma vez disse a uma personalidade de grande influência: «Vossa esposa é muito melindrosa», falava eu no sentido de honestidade e aludindo às suas virtudes. Mas ele perguntou-me: «Haveis tocado as suas suscetibilidades?» E eu julguei cumprir um dever de delicadeza respondendo afirmativamente. Pois podeis crer-me que agora, já depois de tanto tempo passado, ainda sinto a vergonha na cara após aquele tremendo bofetão. Prejudico-me sempre de igual maneira.
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