O apóstolo Tomé disse que não creria sem primeiro ver, mas quando viu exclamou: «Meu Senhor e meu Deus!» Será que acreditou obrigado pelo milagre? Não é provável; acreditou apenas porque desejava acreditar e é possível que no seu coração já acreditasse quando dizia: «Não acreditarei enquanto não o vir.»
Talvez tenha deixado suspeitar que Aliocha era de pouco alcance, pouco desenvolvido, que abandonou os estudos e outras coisas. No que respeita aos estudos é verdade; mas dizer que era estúpido ou duro de compreensão seria uma grande injustiça. Decidiu-se a mudar de vida, como antes disse, por considerá-lo um meio de elevar a alma acima das trevas. Isso sem contar que, até certo ponto, pertencia a esses jovens da passada época que, guiados pela sua honradez nata, procuravam a verdade crendo nela e estavam prontos a colocar ao seu serviço todas as suas forças, toda a sua atividade e a sacrificar-lhe tudo, mesmo a própria vida. Infelizmente, esses jovens não compreendem que o sacrifício da vida é, em muitos casos, o mais fácil e o de cinco ou seis anos, por exemplo, da sua fogosa juventude, que lhes pode permitir multiplicar por dez os meios de serem úteis à verdade e à causa que querem servir, é um sacrifício superior às forças de muitos. O caminho que Aliocha seguiu também ia em sentido oposto, mas empreendeu-o com um ardente desejo de heroísmo. Desde que começou a refletir seriamente convenceu-se da existência de Deus e da Imortalidade e, em seguida, dizia como que por instinto: «Quero viver para a vida eterna, afastado de tudo o que a possa comprometer.» Se tivesse decidido que nem Deus existia nem a sua alma era imortal, ter-se-ia declarado do mesmo modo socialista ou ateu, porque o socialismo não é meramente um problema de trabalho: antes do mais, é a forma em que se apresenta hoje o ateísmo, é o problema da torre de Babel construída nas costas de Deus, não para subir da terra ao céu, mas para que o céu desça à terra. Ao jovem, era superior a si mesmo continuar a viver como até então; chegou a ser-lhe impossível, depois de ver o que estava escrito: «Se queres ser perfeito, dá o que tens aos pobres e segue-me.»
E Aliocha pensava: «Poderei eu entregar dois rublos em vez de tudo e contentar-me em ir à missa em vez de O seguir?»
Talvez que as recordações de infância o fizessem inclinar-se para o convento a cuja igreja a mãe o levava com frequência; trabalhassem poderosamente na sua vocação os raios de um sol caduco e a santa imagem a quem o oferecera um dia a «pobre louca» ou, preocupado com a ideia da perfeição, talvez tivesse vindo a casa verificar se poderia desprender-se de tudo o que o rodeava ou apenas dos «dois rublos», e o Presbítero faria o resto...
Permiti agora que explique o que era um presbítero nos mosteiros russos. Custa-me não estar perfeitamente documentado, mas tentarei dar uma ideia superficial em meia dúzia de palavras. Cronistas autorizados afirmam que a instituição dos Presbíteros não data de mais de um século entre nós, embora a igreja ortodoxa do Oriente, com mais profundas raízes nos montes Sinai e Athos, tenha mais de mil anos de duração. Há quem defenda essa antiguidade na Rússia, mas que desapareceu entre as calamidades que transtornaram este país: os tártaros, a guerra civil, a interrupção de relações com o Oriente depois da ruína de Constantinopla, até que um dos grandes «ascetas», como chamam a Paissy Velitchkovsky e os seus discípulos, a restauraram. Hoje são poucos os mosteiros russos que gozam da graça de ter um presbítero, alguns dos quais ou se viram perseguidos como inovadores odiosos ou adquiriram sumo poderio, como os célebres de Kozetsk e Optin. Como e quando se introduziu esta instituição no nosso mosteiro, não poderei dizê-lo; só sei que Zossima era o último dos quatro que teve, que estava já muito acabado devido aos jejuns e doenças, não havendo ninguém que o pudesse substituir, o que era um grave problema para um mosteiro que não se distinguiu em nada até ali, nem em relíquias de santos, imagens prodigiosas, tradição de glória, ou por uma simples proeza histórica. Gozou de prosperidade e estendeu o seu nome por toda a Rússia graças ao prestígio dos seus Presbíteros a quem visitavam milhares de peregrinos procedentes de todo o lado.
O que é um presbítero? Um presbítero apodera-se da vossa alma e vontade para moldá-las à própria alma e vontade. Ao eleger a sua direção espiritual submeteis-vos abnegadamente renunciando a vós mesmos. A este noviciado, a esta escola de renúncia, entram de livre vontade os que anseiam pela conquista e domínio de si mesmos a fim de alcançarem através de uma vida de obediência a liberdade perfeita, desligados de toda a paixão que promove a própria desconfiança. Nenhuma teoria esclarece esta instituição formada no Oriente por mil anos de prática. O compromisso que contrai o devoto de um Presbítero não se limita à obediência vulgar que se observa em qualquer convento, pois que fica obrigado à confissão e a unir-se-lhe por laços indissolúveis.
Contam que, nos primeiros anos do cristianismo, um noviço desobediente ao presbítero abandonou o seu mosteiro na Síria e chegou ao Egito onde, depois de feitos muito importantes, mereceu sofrer o martírio. Quando a Igreja lhe tributava honras de santo, pois que por tal o conhecia, dizem que quando o diácono proferiu «Saiam os profanos» o féretro que continha o corpo do mártir se moveu precipitando-se para fora do templo. Três vezes se repetiu o prodígio. Perceberam então que aquele santo tinha quebrado o voto de obediência e não poderia ser perdoado, com todas as suas virtudes, sem a absolvição do Presbítero a quem abandonara. Só depois de obtida esta, puderam levar a cabo os funerais. Bom, é uma velha lenda, mas conto em seguida um exemplo recente:
Um monge recebeu do seu Presbítero a ordem de sair de Athos, que era um lugar sagrado e um porto de refúgio; teria de visitar o Santo Sepulcro e partir logo para o Norte da Sibéria, porque «é ali o teu posto e não aqui». Abatido, pesaroso, dirige-se o monge ao Patriarca ecuménico de Constantinopla solicitando-lhe que o dispense da sua obediência O Patriarca responde que não pode fazer-lhe a vontade, pois não há poder na terra que possa valer-lhe a não ser o do próprio Presbítero a quem se havia submetido.
Em certos casos, os Presbíteros achavam-se revestidos de uma autoridade sem limites, inexplicável, a que se deveu a resistência e quase perseguição que em alguns conventos lhes foi oposta. Não obstante, esses seres atraíam imediatamente a vontade e simpatia do povo ignorante e de bom número de pessoas de posição, que acudiam em massa aos nossos mosteiros para lhes expor as suas dúvidas, os seus pecados e misérias, e pedir conselho e penitência. Gritavam os inimigos que isto depreciava a confissão de maneira arbitrária, embora o direito que tinham o monge e o leigo de abrir os seus corações não participasse em absoluto do caráter sacramental. A instituição acabou por prevalecer. Claro que este instrumento que deu testemunho durante dez séculos da regeneração moral do homem que passa da escravidão à liberdade e perfeição espiritual podia ser uma arma de dois gumes e conduzir tanto à humildade e a uma pronta tranquilidade de consciência como à mais satânica soberba; quero dizer, à servidão e não à liberdade.
O venerável Zossima andava nos sessenta e cinco anos. Pertencia a uma casa abastada e na sua juventude fora militar e servira como oficial no Cáucaso. Algum dote peculiar o devia ter prendido a Aliocha, a quem amava e por quem se deixava tratar. O jovem vivia na cela do velho, desligado de obrigações e com liberdade para ir aonde lhe apetecesse podendo mesmo permanecer ausente durante vários dias. Usava o hábito por gosto, para não se diferenciar dos outros noviços. É possível que a fama e a autoridade do Presbítero agitassem vivamente a sua imaginação juvenil, pois dizia-se que tantas e tantas almas haviam confessado ao Padre Zossima as suas culpas, pedindo-lhe palavras de consolo e de saúde, que chegou a adquirir uma pronta intuição em saber à primeira vista o que desejava um desconhecido e descobrir-lhe as inquietações da consciência. Com frequência surpreendia e alarmava quem o visitava dizendo-lhes os segredos antes que falassem.
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