A chegada de Aliocha pareceu afetar a sua moralidade, como se despertasse qualquer coisa que, havia tempo, estava morta na alma daquele velho.
— Sabes que te pareces imenso com a pobre louca? — perguntava ao contemplar a semelhança entre o filho e a mãe.
E foi Grigory quem mostrou a Aliocha a campa da «pobre louca», como lhe chamava o viúvo. Acompanhou-o até ao cemitério e mostrou-lhe, num canto afastado, um modesto epitáfio de ferro fundido com o nome e a idade da defunta e a data da sua morte e, abaixo, uma estrofe segundo a moda antiga da classe média. Surpreendeu o jovem que tudo aquilo fosse obra de Grigory; este colocara o epitáfio sobre a sepultura da «pobre louca», pagando-o do próprio bolso quando se cansou de o pedir em vão ao amo antes da partida deste para Odessa sem ter cuidado da campa nem de nada. Aliocha não revelou grande emoção perante o espaço de terra onde jazia sua mãe e escutou cabisbaixo o relato solene e minucioso da construção do simples monumento, retirando-se em seguida sem articular palavra. E já não voltou ao cemitério senão depois de passado, pelo menos, um ano.
Este episódio tão insignificante influenciou Fedor Pavlovitch de maneira bem original. Num arrebatamento, pegou em mil rublos e deu-os ao mosteiro para que dissessem missas de requiem por sua mulher; não pela mãe de Aliocha, a «pobre louca», mas pela primeira, Adelaide Ivanovna, que parecia assombrá-lo. Embriagou-se naquela mesma noite e encheu de injúrias os monges, em frente de Aliocha. Longe de ser devoto, pode dizer-se que nunca na sua vida acendeu uma vela a um santo; mas com frequência se dão tais tipos a esses súbitos impulsos de sentimentalismo.
Já apontei que parecia inchado. Os traços do rosto eram testemunho fiel de toda a sua vida relaxada. Por entre os enormes papos que existiam nele viam-se uns olhos pequeninos que encaravam as pessoas sempre descaradamente, entre suspeitosos e irónicos; as rugas que sulcavam as faces e a nudez da garganta que se destacava em várias papadas sob a barba pontiaguda davam uma impressão repulsiva de sensualismo. A boca abria-se, demasiado grande e de lábios grossos, por onde espreitava a ruína de uma dentadura em péssimo estado. Começava sempre a falar arfando. Gostava de se servir do próprio rosto para gracejar, mas creio que o satisfazia possuí-lo; por qualquer coisa dedicava um cuidado especial ao nariz, de conspícuo e delicado perfil aquilino.
— Um perfeito nariz de romano — comentava com orgulho. — Com a minha barbicha, tenho todo o aspeto de um velho patrício na decadência.
Poucos depois, Aliocha comunicava-lhe sem preâmbulos o seu maior e mais santo desejo de entrar no convento, onde já o aguardavam os monges de braços abertos, e pedia-lhe a necessária autorização. O astucioso velho, que adivinhava quão vivamente o venerável Zossima, que vivia num retiro no eremitério, impressionara o seu «belo rapaz», escutou o pedido pensativo e em silêncio, e sem deixar antever a menor surpresa começou em jeito de sermão:
— Este é o mais honrado dos monges, desde já. Bem! Com que então queres viver com ele, meu belo rapaz!...
Estava quase bêbado e gesticulava com esses gestos lentos em que o alcoólico parece tentar uma infeliz luta.
— Bem! Já pressentia que acabarias com qualquer coisa nesse estilo. Acreditas em mim? E fazes bem, caramba! Já tens os dois mil rublos que serão o teu dote; além disso, nunca te abandonarei, meu anjo; darei por ti tudo o que me pedirem, se mo pedirem. Mas claro que se nada pedem, porque havemos de nos atormentar? Não te parece? Afinal tu não gastas mais do que um canário, dois grãos por semana. Bom! Sabes que junto de um convento há sempre um lugar onde nem as crianças ignoram que vivem as «mulheres dos monges», como lhes chamam? Trinta fêmeas, creio! Eu mesmo as vi. Digo-te que são de primeira, pois que na variedade está o gosto. O mal é que todas são russas de respeito; não há francesas. Claro que lhes sobra dinheiro para as poderem trazer quando quiserem. Se soubessem como é bom, fá-las-iam acudir de todo o lado. Bom, aqui não há nada disso: os monges não têm amigos, vivem honestamente e jejuam, concedido... Bom, bom... Com que então desejas fazer-te monge? Digo-te que me causa verdadeira tristeza a nossa separação, Aliocha. Queres acreditar que te idolatrava? Bem, és uma dádiva da providência; tu rogarás por nós, pecadores, porque se pecou muito, muito nesta casa. Sempre me preocupei sem saber quem quereria rezar por mim e duvidava se encontraria alguém no mundo que quisesse encarregar-se desse trabalho, porque se me vens com rezas e pregações tenho que confessar-te que sou um solene estúpido! Não fazes ideia!... Um solene estúpido! Mas repara; por parvo que seja em assuntos celestiais, pensei neles. Pensei algumas vezes, não julgues que foi sempre. É impossível que, quando morrer, os diabos não deixem de me arrastar com as suas cadeias. E o que me intriga são as cadeias. De onde as tiram? De que são? De ferro? Em que lugar se forjam? Possuem lá uma forja? Os monges do mosteiro devem crer que no inferno há um teto, por exemplo. É mais distinto, mais explicável, mais luterano, isso é. Depois de tudo, pouco importa que haja ou não haja teto; mas esse teto implica uma endiabrada questão, sabes? Se lá não existem fábricas, não pode haver cadeias, e se não há cadeias vem tudo por água abaixo e não temos mais em que pensar; o que também é inverosímil porque, então, como me arrastariam para o inferno? E se não me arrastam para o mais fundo, que justiça há neste mundo? Seria preciso inventá-las, estas cadeias, mesmo que só para mim, porque se tu soubesses, Aliocha, que patife eu sou...
— Mas ali não fazem falta as cadeias! — assegurou Aliocha, olhando seu pai com doçura e seriedade.
— Sim, sim; já nem há sombras das cadeias. Já sei, já sei. Ouve como um francês pinta o inferno: J'ai vu l'ombre d'un cocher, qui avec l'ombre d'une brosse frottait l’ombre d'une carosse. Mas quem te disse que não existem tais cadeias, querido? Quando estiveres entre os monges, dançarás a outro compasso. Parte e procura a verdade, e então vem dizer-me o que há de certo. Qualquer caminho para o outro mundo nos será mais cómodo se soubermos o que ali se passa. Além disso, é mais conveniente para ti a companhia dos monges do que a de um velho bêbado e a de mulherzinhas... embora, como és um anjo, nada te manche. Era capaz de jurar que nem lá diminuirá a tua pureza; deixo-te ir, porque assim o espero. Agora pões nesse teu desejo todos os sentidos, toda a inteligência. Ao princípio arderás até te consumires, mas em se acabando a tua fogosidade voltarás para casa. Aqui te aguardarei; vejo que és a única pessoa no mundo que não me condena. Acredita em mim, meu filho, que o adivinho; não posso deixar de o adivinhar.
E começou a choramingar. Era um sentimental; tão malvado como queiram, mas um sentimental.
Capítulo 5 — O Presbítero
Talvez alguém pense que Aliocha seria um jovem doente, pálido e consumido por devoções e desmaios. Mas não; era um moço de dezenove anos, de estatura regular, rosto corado e olhar claro e simpático. O cabelo castanho escuro enquadrava um rosto de linhas harmoniosas, delicadamente ovaladas, com testa espaçosa e olhos rasgados e brilhantes. Tudo isto lhe dava um ar concentrado sem perda da sua tranquilidade.
Seria preciso afirmar que o rosto corado não é incompatível com o misticismo e o fanatismo, mas parece-me que Aliocha era tão realista como qualquer outro. Sim, não nego que o mosteiro acreditaria de todo em milagres; mas no meu entender os milagres não são nunca uma pedra de escândalo para os realistas, nem os predispõem a acreditar. O verdadeiro realista, que também seja incrédulo, sempre encontrará forças e argúcias para negar o milagre, e se dá com ele como um feito irrefutável preferirá não dar fé aos seus sentidos a admitir o acontecimento. E se o admite, tê-lo-á como um fenômeno natural que está ainda fora da investigação científica. Para um realista não nasce a fé do milagre, antes o inventa, e quando o realista crê chega mesmo a confiar ao seu realismo a aceitação do milagre.
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