Digamos, antes de mais, que este Mitya, ou melhor, Dmitri Fedorovitch, foi o único dos três irmãos que cresceu planeando emancipar-se com a sua fortuna ao chegar à maioridade. A mocidade transcorreu-lhe tão desordenada como a infância. Malogrou a carreira empreendida ao entrar numa escola militar; foi enviado ao Cáucaso e obteve promoções; bateu-se em duelos, foi degradado, recuperou as «estrelas» e levou sempre uma vida turbulenta e dispendiosa. Conheceu então o pai, junto de quem o levou somente o propósito de esclarecer a herança.
Estas relações não provocaram o menor afeto filial na sua alma nem foram duradouras. Apressou-se a partir logo que conseguiu determinada soma e a promessa de futuras remessas dos rendimentos das suas terras, acerca de cujas rendas e valor — caso digno de se notar — não conseguiu quaisquer informações do pai. É também de notar que, naquela altura, começou o pai a perceber os vagos e exagerados planos que o filho forjava para os bens que possuía, o que o contentou grandemente pelo muito que lhe ia facilitar os seus avessos planos. Pensou que o moço, frívolo, arrojado, impetuoso, desleixado e impaciente se daria por muito feliz — pouco lhe importava que passageiramente — por receber dinheiro. Em consequência, resolveu tirar partido desta vantagem, enviando-lhe de quando em quando pequenas somas por conta. E quando, quatro anos mais tarde, Mitya regressou devorado pela ansiedade de regular definitivamente a questão com o pai, soube em terrível sobressalto que nada lhe restava, que recebera já toda a herança em dinheiro, que por vários acordos formulados de antemão, segundo o seu expresso desejo, não tinha direito de esperar nada, etc., etc. Mitya deixou-se abater, receando traições e fraudes que o traziam fora de si. Esta deceção iria provocar a tragédia que consistiu o assunto, ou melhor, a essência da primeira parte da minha obra. Mas, antes, digamos qualquer coisa dos outros dois filhos de Fedor e da esposa de quem os teve.
Capítulo 3 — Do Segundo Matrimónio e Seu Primeiro Fruto
Fedor Pavlovitch voltou a casar quando Mitya contava quatro anos, casamento este que duraria oito anos. Conheceu a segunda mulher, uma jovem chamada Sofia Ivanovna, numa outra província aonde o levara um negócio de pouca monta em companhia de um judeu; porque apesar de se encontrar sempre bêbado e submerso em vícios, não descuidava acrescentar o seu capital, manejando os assuntos com habilidade e êxito, sempre superiores aos seus escrúpulos.
Filha de um obscuro diácono, mas órfã desde a infância, Sofia cresceu em casa da viúva de um general, uma velha opulenta que foi para a moça anjo e verdugo ao mesmo tempo. Não conheço pormenores, mas ouvi dizer que a pobrezita, toda doença e gentileza, chegou a chorar no chão ao querer entregar o pescoço a um laço corrediço para se libertar das horríveis torturas a que a submetia o capricho insaciável de uma velha que, sem aparentar maldade, se portava como um tirano cruel por puro prazer.
Fedor Pavlovitch apresentou ofertas à velha que foram recusadas seguindo o conselho de conhecidos e propôs então à moça a fuga, como no seu primeiro matrimónio. De certeza não teria acedido ela a casar-se por nada deste mundo se conhecesse aquele homem, por pouco que fosse; mas a distância a que vivia e a escassa reflexão de uma jovem de dezasseis anos, pensando que pelo menos se está melhor no fundo de um rio do que amarrada a uma proteção odiosa, decidiram-na a trocar de benfeitor. Fedor Pavlovitch não obteve, desta vez, nem um maravedi, pois da generala só receberam enfurecidas maldições. Bom, verdade se diga que Fedor também não contava com um dote. A rara formosura e a inocência da moça seduziam-no: o seu ar de candura possuía singular atrativo para um depravado que até então só admirara os mais grosseiros tipos de mulher.
«Estes olhos inocentes cravam-se-me na alma como navalhas», dizia com o seu riso falso sem que se pudesse interpretar a metáfora para mais do que uma expressão de afeto sensual. Como quase «a havia libertado da corda que a enforcava», não fazia cerimônia e, declarando-se «prejudicado», valia-se da ilimitada docilidade e submissão de Sofia para ignorar a mais elementar decência da vida conjugal, recebendo libertinas debaixo do mesmo teto e entregando-se a orgias desenfreadas na presença da esposa. Tenho que dizer, para que vejam a que ponto chegaram as coisas, que Grigory, o sombrio, estúpido, teimoso e respondão criado que tinha aversão à primeira mulher, Adelaide Ivanovna, se mostrou decidido partidário desta. Capitaneava a sua causa, injuriando Fedor Pavlovitch de maneira pouco conveniente a um criado e, certa ocasião, desmanchou uma festa, pondo fora de casa, sem cerimônia, todas as amigas do amo. A desgraçada mulher que vivera desde a infância dominada pelo terror acabou por contrair uma dessas doenças nervosas tão frequentes entre as mulheres do povo, a quem se crê «possuídas do demônio». Por vezes, os seus ataques de histerismo faziam-na perder o conhecimento.
Deu a Fedor Pavlovitch dois filhos: Ivan, no primeiro ano do matrimónio, e Alexey, três anos depois. Este contava quatro anos quando perdeu a mãe e, por estranho que pareça, consta-me que a recordou, ainda que vagamente, toda a vida. Morta a mãe, os filhos tiveram uma sorte parecida com a do irmão mais velho, Mitya. Ficaram no abandono e esquecimento completos. Também deles cuidou Grigory na sua cabana, de onde os levou a despótica velha que criara a mãe. Incapaz de esquecer o que considerava um insulto de Sofia, durante aqueles oito anos não cessou de obter notícias exatas da maneira como vivia e, a par da doença e da horrível companhia que tinha de suportar, declarou mais de uma vez às suas visitas e amizades:
— É bem feito! Deus castigou a ingrata.
Transcorreram três meses e uma tarde apareceu de imprevisto a mesma generala, não parando até chegar a casa de Fedor Pavlovitch. Pouco tempo se demorou, mas conseguiu muito. O viúvo da sua protegida, a quem não via desde antes da boda, recebeu-a bêbado que nem um cacho e dizem que quando a velha o viu à sua frente se aproximou dele decididamente e, sem outro preâmbulo que duas sonoras bofetadas aplicadas com mão de mestra, uma em cada face, lhe agarrou nas guedelhas e o sacudiu como se de um boneco de trapos se tratasse. Depois dirigiu-se como uma flecha ao pavilhão dos criados em busca dos rapazes e, notando à primeira vista que estavam sujos e cheios de miséria, pregou a Grigory, sem qualquer advertência, um soco em pleno rosto e, anunciando-lhe que levava as duas crianças, embrulhou-as num cobertor, meteu-as no coche e mandou este partir imediatamente.
Grigory aceitou o golpe sem pestanejar. Com a resignação de um escravo, acompanhou a velha senhora até à carruagem e despediu-se com uma profunda reverência e estas palavras de ternura:
— Deus vos pague a caridade que tendes para com os órfãos.
— Tendes todos cabeça de pedra! — gritou-lhe a generala quando o coche arrancou.
Fedor Pavlovitch chegou à conclusão de que o sucedido era «uma grande coisa» e não viu qualquer inconveniente em dar o seu consentimento formal a quantas propostas lhe fez a viúva do general com respeito à educação dos filhos. Quanto aos sopapos... nem cão nem gato se livrou de ouvir como lhos haviam pregado.
E sucedeu que a velha morreu pouco depois, mas não sem ter deixado no testamento mil rublos a cada criança «para a sua educação; de tal maneira que os usarão eles só e com a condição de que sejam divididos proporcionalmente até que cheguem aos vinte e um anos, pois a soma é mais do que suficiente para esses rapazes». Não li o testamento, mas disseram-me que contém cláusulas originais pelo seu estilo, numa redação caprichosíssima. Afortunadamente, o herdeiro principal, Yefim Petrovitch Polenov, chefe da nobreza da província, era um homem com grande coração.
Читать дальше