— Não, isso é falso — respondeu o velho.
— Não vi nunca nada parecido nas vidas dos santos. A qual deles se refere? — perguntou o padre bibliotecário.
— Não sei como lhe chamam. Não sei e não posso dizê-lo. Enganaram-me. Como me contaram assim o conto agora. E sabeis quem mo contou? Pois foi Pyotr Alexandrovitch, aqui presente, a quem tanto escandalizou a história de Diderot. Foi ele próprio!
— Isso não é verdade! Nunca te falei de semelhante coisa!
— Concordo que não era a mim que o contavas; mas eu estava presente naquela reunião. Foi há três anos, lembro-me bem. E se me lembro foi porque essa história ridícula fez quebrar a minha fé. Pouco suspeitavas tu naquele dia que eu me afastava com a minha crença de rastos e que desde aí enfraqueceu de dia para dia. Sim, Pyotr Alexandrovitch, tu foste a causa da minha grande queda moral. Não foi Diderot, não!
Fedor Pavlovitch estava excitado, patético, embora brincasse manifestamente, e conseguiu zangar Miusov, que murmurou:
— Acaba com essa tontice! Este homem não faz mais nada do que falar desatinadamente! Talvez eu tenha dito isso... mas não foi a ti. Quem mo contou, em Paris, foi um francês que tinha passado muitos anos na Rússia estudando os nossos grandes estadistas e disse-me que o ouvira durante a missa na qual liam Vidas de Santos... Eu nunca as li nem as lerei... mas em banquete fala-se de tudo... nessa altura estávamos a comer.
— Sim, tu estavas a comer e eu a perder a minha fé — disse o outro, arremedando-o.
«Que me importa a tua fé?», esteve a ponto de saltar Miusov, mas conteve-se e apenas disse com desprezo:
— Corrompes tudo aquilo em que tocas!
O ancião levantou-se vivamente.
— Perdoem, cavalheiros, se os abandono por um momento. Esperam-me outros que chegaram antes de vós. E não digam mentiras durante a minha ausência, hem? — acrescentou, voltando-se para Fedor Pavlovitch risonhamente.
Saiu acompanhado por dois noviços que se apressaram a oferecer-lhe apoio para descer a escada. Aliocha, que estava sem alento, reanimou-se mais ao ver a saída do mestre, ao vê-lo alegre e sossegado.
O Padre Zossima dirigia-se ao pórtico a fim de dar a bênção ao povo que o aguardava, mas Fedor Pavlovitch deteve-o na porta da cela.
— Homem de Deus! — exclamou emocionado. — Permiti que volte a beijar-vos a mão. Sim, vejo que convosco se pode tratar e fazer algo. Ou julgais que estou sempre a mentir como agora? Pois sabei que tudo o que fiz aqui foi para vos experimentar. E crede, estou convencido de que se pode confiar em vós completamente. A minha humilde pessoa terá encontrado graça junto de vossa santidade? Pois bem; vou honrá-la demonstrando como se pode conviver convosco. E agora ponto final na minha boca. Durante a entrevista não me moverei da cadeira. Tu tens a palavra, Pyotr Alexandrovitch. És o personagem principal... durante dez minutos.
Capítulo 3 — Mulheres Crédulas
À sombra do portal aberto do outro lado do recinto, umas vinte mulheres do povo aguardavam, impacientes, a anunciada saída do Presbítero. Duas senhoras, a viúva Hohlakov e sua filha, sabedoras da fausta nova, tinham-se aproximado e esperavam num apartamento contíguo, destinado às pessoas de consideração.
A mãe era uma senhora rica, elegante e vistosa, um pouco pálida e de olhos negros e vivos, ainda jovem, pois não passava dos trinta e três anos embora já fosse viúva há cinco.
Sua filha, uma moça de catorze primaveras, sofria de uma paralisia parcial que havia seis meses a retinha numa cadeira de rodas, mas vibrava a vida no seu rosto de grande beleza, afinado pela doença. Os olhos eram rasgados e brilhavam com uma inocente travessura entre as sombras das longas pestanas. A mãe quisera levá-la ao estrangeiro na primavera, mas fora surpreendida pelo verão enquanto tratava dos seus intermináveis assuntos.
Chegadas à cidade havia sete dias, mais para atender aos negócios do que à devoção, só haviam visto o Presbítero uma vez, três dias antes, e embora soubessem que agora mal se deixava ver, voltaram a fim de suplicar encarecidamente se lhes seria concedida «a dita de ver de novo o grande médico».
A dama ocupava uma cadeira junto à pobre inutilizada e, perto delas, estava um velho frade de uma ordem obscura vindo do Norte longínquo, ansiando também pela bênção do Padre Zossima.
Quando este apareceu dirigiu-se primeiro às camponesas aglomeradas na escadaria que ia dar ao vestíbulo; deteve-se no degrau superior e, colocando uma estola ao pescoço, começou a distribuir bênçãos às mulheres que se apertavam à sua volta.
Com grande dificuldade apresentaram-lhe uma doente que ao ver o velho se agitou em terríveis convulsões, lançando gritos e arquejando cheia de suores como se estivesse com as dores de parto. Aplicou o ancião uma das extremidades da estola sobre a fronte da mulher, leu uma oração curta e a calma e a quietude voltaram.
Não sei como se praticam atualmente os exorcismos, mas quando era pequeno presenciava com frequência nas aldeias e mosteiros muitos casos de cura de «possessas». Eram conduzidas à igreja, cuja paz ficava perturbada com os seus guinchos semelhantes ao ladrar de cães, e quando o Santíssimo ficava exposto e as arrastavam perante a divina veneração do altar cessava de repente a «possessão» e a doente acalmava-se, pacificando-se por algum tempo. Que impressão isto produzia na minha imaginação jovem e como me intrigava! Gente ignorante e até os meus mestres diziam que se tratava de uma doença simulada para se livrarem do trabalho e que apenas uma disciplina vigorosa e inquebrantável poderia acabar com tanta preguiça. E para o provar contavam várias anedotas. Mas logo soube com assombro, lendo obras de especialistas, que não existe tal ficção, mas sim uma terrível doença de que são vítimas as mulheres submetidas a trabalhos pesados, trabalhos esses que tão brutalmente afligem a camponesa da nossa terra.
É uma doença que se alimenta da natureza esgotada de uma parturiente recente que tenha dado à luz anormalmente e sem assistência médica, na mulher extenuada pelas privações, misérias e maus tratos, insuperáveis pela sua frequência.
A rara e súbita cura destas mulheres frenéticas perante a Eucaristia, que se deseja ainda atribuir a malícia e engano dos clérigos, deve ser a coisa mais natural. A doente e as mulheres que a conduzem creem a pés juntos que o espírito maligno não pode resistir à presença de Deus sacramentado, nem à adoração que a sua vítima lhe renda. O desejo veemente de uma cura milagrosa e a arreigada crença de que se realizará produzirá uma forte convulsão, uma espécie de reação em todo o organismo de uma mulher, cujo sistema nervoso está completamente gasto, no momento preciso em que se cumpre o rito em que confia. E isto é o que sucede e isto mesmo sucedeu quando o Presbítero tocou na doente com a sua estola.
Algumas mulheres choravam de admiração e entusiasmo perante o prodígio; outras comprimiam-se para conseguirem beijar o hábito; ouviam-se rezas em voz baixa.
Benzeu-as todas e ficou a conversar um pouco com algumas. Conhecia bem a «endemoninhada», pois já ali a haviam levado. Era de uma aldeia próxima.
— Mas essa vem de longe — acrescentou, apontando para uma mulher de meia idade, fraca e cansada, de rosto enegrecido pelo sol, quase curtido, e que permanecia de joelhos, com os olhos cravados no Presbítero, como que fascinada.
— De muito longe, Padre, de muito longe! De duzentas milhas! É muito longe! — queixou-se a aludida acompanhando-se de um balanço que deu ao corpo e sem tirar a cara do apoio da mão.
Que silêncio de dor encerra o sofrimento do povo, afogando-o na amargura do seu íntimo! Por vezes rompe-se e desfaz prantos e gemidos inconsoláveis, especialmente entre as mulheres; mas essas lágrimas não mitigam a dor, porque caem ardentes na mesma ferida da alma, despedaçando-a ainda mais. É uma dor que não quer consolo, que nasce e se mantém do desespero, irrita-se e geme com o desejo persistente de o aplacar.
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